研究報告:Comitiva de boiadeiros no Pantanal

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COMITIVA DE BOIADEIROS NO PANTANAL – MATO GROSSENSE DO SUL:
MODO DE VIDA E LEITURA DA PAISAGEM

Aos boiadeiros do Pantanal, que tanto me inspiraram no trajeto desta pesquisa, por sua beleza, sabedoria e coragem.

Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive.

Fig. 1 – Sr. Zé Preto atravessando a boiada no rio Cerradinho. Abobral. Acompanhamento segunda Comitiva.

RESUMO

Esta dissertação aborda o modo de vida e a leitura da paisagem dos boiadeiros no Complexo Pantanal Sul-Mato-Grossense. Os boiadeiros representam parte dos trabalhadores da pecuária, uma importante atividade econômica nesta região. Montados em burros, atravessam diversas paisagens viajando até meses, conduzindo grande quantidade de gado pertencente a pecuaristas. Devido à escassez de material disponível na literatura foram coletados relatos, principalmente, de entrevistas com interlocutores locais, suas histórias de vida e através do acompanhamento presencial de Comitivas de boiadeiros. Para compreensão do tema adotou- se a concepção de paisagem como lugar no contexto de populações tradicionais, considerando o significado dado pelas experiências vividas e representações simbólicas. A descrição contextualizada de Geertz (1989) trouxe contribuições metodológicas para fundamentar o trabalho de campo e auxiliar na interpretação dos dados. Deste modo, buscou-se esboçar o universo cultural do boiadeiro, descrevendo a estrutura e o cotidiano desta atividade, que segue o ritmo das águas do Pantanal, estabelecendo as fases de enchentes, cheias, vazantes e estiagens. Além disto, por meio de relatos de boiadeiros foram elaborados mapas de alguns dos roteiros destas viagens, identificando-se os marcos referenciais da paisagem cultural e um matiz de linguagens como estratégias de orientação. A interpretação de dados proporcionou uma discussão sobre as contradições e adaptações no modo de vida dos boiadeiros frente às mudanças econômicas e sociais, reconhecendo sua persistência, singularidade e complexidade como um conhecimento extreitamente integrado às paisagens pantaneiras. As reflexões nesta pesquisa pretendem apontar uma diferente perspectiva, de acordo com a importância do valor cultural dos boiadeiros pantaneiros.

LISTA DE FIGURAS [1]

Fig. 1 – Sr. Zé Preto atravessando a boiada no rio Cerradinho. Abobral. Acompanhamento segunda Comitiva.
Fig. 2 – Vó Olívia, eu e minha irmã Denise (à direita)
Fig. 3 – Fazenda Sanharão (avôs maternos)
Fig. 4 – Vô Basílio, minha irmã Denise e prima Telma (à direita)
Fig. 5 – Refúgio Ecológico Caiman. Miranda-MS. (Fonte: Refúgio Ecológico Caiman)
Fig. 6 – Trabalhando como guia (de costas, explicando sobre a palmeira Acuri): Trilha Cordilheira do X.
Fig. 7 – Trabalhando como guia (em pé, próxima a baía), informando sobre o passeio de canoa.
Fig. 8 – Saída da Comitiva na Fazenda Caiman. Primeiro acompanhamento presencial de uma Comitiva de boiadeiros (ao meu lado direito está o Condutor Sr. Ramon Miranda, logo atrás está o seu pai, Sr. Alfredo, e ao fundo estão os Meeiros, Fiadores e um acompanhador do Retiro Santa Vóia, Fazenda Caiman).
Fig. 9 – Ciclo das águas e boiadeiros no Pantanal-MS. (À esquerda seguindo o sentido da seta: 1. Enchente: Ponte sobre o Rio Miranda. Segunda Comitiva. 2.Cheia: Travessia Rio Cerradinho. Segunda Comitiva. 3. Vazante: Ponteiro Morcego. Primeira Comitiva. 4. Seca: Saída de Comitiva da Fazenda Fátima). Montagem das fotos: Juliana Moreno.
Fig. 10 – Observação participante (primeira comitiva). À minha esquerda, os boiadeiros Vô Alfredo, Ramon, Morcego e Zumba
Fig. 11 – À minha esquerda, Zumba e à direita Morcego, com berrante. Primeira Comitiva
Fig. 12 – Sapo, minha montaria. Terceira Comitiva.
Fig. 13 – Sr. Alfredo Miranda, pai de Ramon
Fig. 14 – Cozinheiro anônimo seguindo viagem. Faz. Nossa Sra do Carmo
Fig. 15 – Sr. Zé Preto trabalhando na estação da cheia. Fonte: Pousada Xaraés
Fig. 16 – Juarez Rodrigues da Silva.
Fig. 17 – Sebastião Rolon
Fig. 18 – Luis Martins (Biguá)
Fig. 19 – José Aparecido F. da Silva (Barriga). Fonte: Pousada Xaraés.
Fig. 20 – Quadro Colaboradores.
Fig. 21 – Comitiva da Fazenda Redenção no ponto de pouso da Fazenda Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 22 – Rádio em ponto de parada, na Comitiva da Fazenda Redenção
Fig. 23 – Juarez. Fonte: Mari Baldissera
Fig. 24 – Seu Zé Preto tomando tereré
Fig. 25 – Bomba
Fig. 26 – Guampa e bomba amarradas a traia.
Fig. 27 – Sr. Jair (Beto Carreiro), Wilson e Barba tomando tereré durante a marcha
Fig. 28 – Isopor (apelido). Detalhe do chapéu enfeitado com lacres de latas de alumínio
Fig. 29 – Sr. Zé Preto trabalhando com o couro de vaca para uso na própria tralha. Fonte: Pousada Xaraés
Fig. 30 – Ramon. Detalhe para acessórios. Fonte: Thiago Rocha
Fig. 31 – Boiadeiro anônimo. Ponto de pouso, fazenda Nossa Senhora do Carmo
Fig. 32 – Ponteiro Luís com o arreiador, “surrando” o animal. (terceira Comitiva)
Fig. 33 – Uso do reio por Ramon Miranda. Fonte: Thiago Rocha
Fig. 34 – Saída da terceira Comitiva. Cozinheiro e tropa cargueira passando à frente da boiada.
Fig. 35 – Sr. Geraldo dirigindo trator até o local de saída da primeira Comitiva acompanhada. Zumba (boiadiero) à direita
Fig. 36 – Simulação das funções dos boiadeiros em Comitiva
Fig. 37 – Ponteiro Luís tocando o berrante.
Fig. 38 – Ponteiro Morcego na Comitiva Fazenda Caiman ( 2005). Fonte: Thiago Rocha
Fig. 39 – Contagem de bois pelo Condutor. Terceira Comitiva
Fig. 40 – Acompanhador de fazenda e Cozinheiro Dourado
Fig. 41 – Cozinheiro Dourado encilhando burro cargueiro (bruacas em baixo, dobros dispostos sobre a mesma e lona para cobri-los).
Fig. 42 – Burro cargueiro encilhado. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha
Fig. 43 – Mula cargueira encilhada. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha
Fig. 44 – Ponto de pouso Fazenda Buriti. Terceira Comitiva.
Fig. 45 – Ponto de pouso. Redes armadas. Fonte: Csaba Gődény
Fig. 46 – Tropa “formada” (em fila organizada)
Fig. 47 – Marcas dos boiadeiros em ponto de parada (cinzas e postes para redes)
Fig. 48 – Cozinheiro e sua cozinha. Fonte: Csaba Gődény
Fig. 49 – Organização da cozinha. Pesquisadora e Ramon Miranda.
Fig. 50 – Cozinheiro Gilberto preparando arroz carreteiro. Comitiva Caima. Fonte: Thiago Rocha (2005)
Fig. 51 – Cozinheiro Gilberto preparando almoço. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha (2005)
Fig. 52 – Organização da cozinha. Panelas de comida sobre trempe e o fogo. Outros utensílios sobre pequena mesa de madeira.
Fig. 53 – Bule de café e coador. Panela com água fervida, colher de concha e canecas de café.
Fig. 54 – Latas d‟ água penduradas em figueira (Fícus sp), colheres de concha, caneca maior para pegar água, menores para bebê-la
Fig. 55 – Poeira no estradão: terceira Comitiva.
Fig. 56 – Estouro de boiada na travessia do Rio Abobral. Comitiva da Nossa Senhora de Fátima.
Fig. 57 – Amanhecer no ponto de pouso da fazenda Nossa Senhora do Carmo. Comitiva desconhecida
Fig. 58 – Canto de cerca. Fazenda São Bento.
Fig. 59 – Porteira de varas. Fazenda Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 60 – Simbra. Fazenda Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 61 – Portão. Fazenda Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 62 – Mata- burro. Faz. Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 63 – Cocho. Faz. Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 64 – Ponte sobre o Rio Abobral. Segunda Comitiva. Pousada Xaraés.
Fig. 65 – Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha.
Fig. 66 – Poço na invernada Antena. Faz. Nossa Senhora do Carmo. Terceira Comitiva.
Fig. 67 – Corredor Faz. São Bento. Região Abobral
Fig. 68 – Aterro. Faz. Nossa Senhora do Carmo
Fig. 69 – Boiadeira Central. Faz. São Carlos (seta branca indica estrada)
Fig. 70 – Estrada d‟água. Faz. Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 71 – Batida de Boiada. Região Abobral
Fig. 72 – Estrada de cascalho. Região Nabileque.
Fig. 73 – Magro (apelido) na Comitiva da Fazenda Caiman. Fonte: Thiago Rocha.
Fig. 74 – Asfalto. BR164. Região Nabileque
Fig. 75 – Marca de boiadeiro em árvore.
Fig. 76 – Escrito de boiadeiro em ponto de pouso.
Fig. 77 – Escrito boiadeiro em pouso
Fig. 78 – Restos de cinza em ponto de pouso
Fig. 79 – Lixo em pontos de pouso (montagem)
Fig. 80 – Rabo de burro (A. bicornis). Região Abobral.
Fig. 81 – Pasto formado com humidícula. Região do abobral.
Fig. 82 – Carandazal (Copernicia Alba)
Fig. 83 – Estrada com mato fechado. Primeira Comitiva. Região Aquidauana/
Fig. 84 – Campina. Faz. Nossa Senhora do Carmo
Fig. 86 – Cordilheira. Faz. Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 87 – Capão. Refúgio Ecológico Caiman
Fig. 88 – Raque e pecíolo de Acuri como espeto de churrasco
Fig. 85 – Campina
Fig. 89 – Fedegoso (Cassia occidentalis L.):
Fig. 90 – Erva de Santa Luzia (Euphorbia hirta L.):
Fig. 91 – Cânfora (Bacopa monnierioides):
Fig. 92 – Caramujo Aruá
Fig. 93 – Tachã
Fig. 94 – Saracura Três-
Fig. 95 – Bugio.
Fig. 96 – Tropa de burros (Equus asinus)
Fig. 97 – Cupins
Fig. 98 – Areião. Retiro Santo Onofre. Faz. Santa Filomena
Fig. 99 – Morro do Azeite. Fonte: Eric de Vito (2009).
Fig. 100 – Campo aberto. Estrada Parque
Fig. 101 – Bola pé. Travessia boiada no rio Cerradinho. Segunda Comitiva. Fazenda Fátima.
Fig. 102 – Vazante Cerradinho. Faz. Nossa Senhora do Carmo
Fig. 103 – Rio Paraguai. Porto da Manga. Embarcadouro de gado.
Fig. 104 – Corixo do inferno. Faz. Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 105 – Marcos Antonio Vaca (Babuíno). Segunda Comitva. Carandazal
Fig. 106 – Orelhas do Sapo. Fazenda Santa Filomena. Segunda Comitiva.

MAPAS

Mapa 1 – Sub- Regiões ou “pantanais” do Pantanal: Bacia do Alto Paraguai no Brasil. Fonte: Silva; Abdon (1998).
Mapa 2– Mapa ilustrativo: Fazendas Pantanal- MS e roteiros das três Comitivas acompanhadas. Fonte: EMBRAPA (modificado).
Mapa 3 – Mapa falado por Biguá (2009) do roteiro de Comitiva de Aquidauana a Fazenda Central.

TABELAS

Tabela 1 – Acompanhamento de Comitivas
Tabela 2 – Entrevistas
Tabela 3 – Simulação de custos para o comprador de gado na contratação do serviço de uma Comitiva com duração de 11 marchas
Tabela 4 – Simulação de custos do Condutor pela prestação do serviço de uma Comitiva de 11 marchas.
Tabela 5 – Marcos referenciais da paisagem: paisagens da fazenda
Tabela 6 – Marcos referenciais na leitura da paisagem: marcas e escritos de boiadeiros
Tabela 7 – Marcos referenciais na leitura da paisagem: vegetação
Tabela 8 – Exemplos de plantas medicinais e formas de utilização citadas pelos boiadeiros.
Tabela 9 – Marcos Referenciais na leitura da paisagem: exemplos de animais
Tabela 10 – Marcos referenciais na leitura da paisagem: solos e relevo
Tabela 11 – Marcos referenciais na leitura da paisagem: paisagens aquáticas
Tabela 12 – Diferenças entre o ciclo das águas (cheia e seca) e seus significados para boiadeiros

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
Mundo – vida: Um conto que eu conto
Uma pesquisadora no ambiente de trabalho masculino
Estrutura dos capítulos
CAPÍTULO 1 – O CAMINHO TRAÇADO NA PESQUISA
1.1 Contextualização do tema de estudo
1.1.1 O Pantanal
1.1.2 O homem pantaneiro e a pecuária
1.2 Marco conceitual: A interpretação da paisagem como lugar no contexto de populações tradicionais
1.2.1 Populações tradicionais
1.3 Trajetória Metodológica
1.3.1 Os Colaboradores
1.3.2 Construção dos Resultados
CAPÍTULO 2. COMITIVA DE BOIADEIROS: MODO DE VIDA
2.1 Viajantes do estradão
2.2 Na batida das Comitivas de boiadeiros
2.3 Puxando a boiada
CAPÍTULO 3 – COMITIVA PANTANEIRA: LEITURAS DAS PAISAGENS
3.1 Na batida do Estradão – marcos referenciais na paisagem
3.2 No ritmo das águas
CAPÍTULO 4: APROXIMAÇÕES PARA UMA CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
APÊNDICE
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

INTRODUÇÃO

Mundo – vida: Um conto que eu conto

Faz-se necessário, como parte da trajetória metodológica [2] escolhida para esta pesquisa, discorrer sobre as razões pessoais que motivaram este trabalho. Expor um pouco da minha história de vida através de memórias, imaginação, percepções e antecipações.

Talvez a inspiração para esta pesquisa tenha se iniciado quando pequena no convívio com minha família materna, em uma fazenda na região do Vale do Ribeira, Mata Atlântica, no município de Barra do Turvo, São Paulo (Fig.2, 3 e 4). Meus avôs eram produtores rurais, meu avô, mesmo analfabeto, negociava e viajava transportando gado e conduzindo porcos a pé. Coisas vividas que contadas nos caminhos da pesquisa renderam boas risadas com alguns boiadeiros, pois no Pantanal são acostumados apenas a conduzir gado a cavalo. Tocar porco a pé soa muito esquisito! Foram anos marcantes de minha vida, dos quais guardo lembranças e ouço histórias contadas e re-contadas na família que aguçam minha curiosidade até os dias de hoje sobre o modo de viver, sentir e trabalhar na pecuária e agricultura.

Fig. 2 – Vó Olívia, eu e minha irmã Denise (à direita).
Fig. 3 – Fazenda Sanharão (avôs maternos).
Fig. 4- Vô Basílio, minha irmã Denise e prima Telma (à direita).

Dessas vivências, credito o surgimento do interesse pelo modo de vida rural e o interesse pela pesquisa da vida da gente do campo. Um pouco difícil, porém, tem sido relacionar emoção e razão ou coração e cientificidade. Desenvolver o mestrado para mim foi algo quase que visceral e apesar de haver tantas regras formais nessa trajetória, ainda acredito que não é necessário se perder a paixão. De qualquer forma, compreendo que há muita responsabilidade em escrever sobre outros modos de vida, outras visões de mundo, que são diferentes de minha experiência, portanto o cuidado científico proporcionou uma segurança necessária durante a elaboração deste trajeto acadêmico.

Este estudo é a continuidade de uma experiência de pesquisa que realizei na monografia de conclusão da graduação em Ecologia na Universidade Estadual de São Paulo (UNESP- Rio Claro) em 2002 [3]. Naquele momento, buscava compreender a relação entre homem e ambiente por meio do espaço vivido por moradores limítrofes às áreas naturais protegidas na região do Vale do Ribeira, no mesmo município onde residiam meus avôs maternos. Meu interesse foi buscar compreender como viviam populações estreitamente dependentes dos ritmos da natureza, quais saberes ou conhecimentos emergiam dessa relação e como têm se mantido diante da realidade atual.

Após esta experiência com a pesquisa acadêmica vivi uma curta experiência trabalhando em São Paulo, quando surgiu uma oportunidade para trabalhar como guia de ecoturismo em uma pousada no Pantanal (Refúgio Ecológico Caiman- Fig. 5, 6 e 7). A entrevista foi feita em São Paulo e acho que fiquei o tempo todo olhando e refletindo, de certo modo encantada com um quadro que mostrava a fotografia da pousada à beira de uma baía imensa. Fui ao encontro da paisagem do quadro… Assim, pude apaixonar-me pelo Pantanal e aos poucos, aproximar- me do ritmo da região, das estações e da cultura pantaneira.

Foi desta convivência que surgiu a chance, em 2005, de acompanhar uma Comitiva de boiadeiros (Fig. 8), onde o intuito era o de transportar cerca de 500 vacas da Fazenda Estância Caiman para outra fazenda, do mesmo proprietário [4].

Fig. 5 – Refúgio Ecológico Caiman. Miranda-MS. (Fonte: Refúgio Ecológico Caiman).
Fig. 6 – Trabalhando como guia (de costas, explicando sobre a palmeira Acuri): Trilha Cordilheira do X.
Fig. 7 – Trabalhando como guia (em pé, próxima a baía), informando sobre o passeio de canoa.

Acompanhei esta viagem durante quatro dias e quando retornei acabei escrevendo um pouco sobre minha experiência [5], mais como uma primeira reflexão que queria partilhar.

Fig. 8 – Saída da Comitiva na Fazenda Caiman. Primeiro acompanhamento presencial de uma Comitiva de boiadeiros (ao meu lado direito está o Condutor Sr. Ramon Miranda, logo atrás está o seu pai, Sr. Alfredo, e ao fundo estão os Meeiros, Fiadores e um acompanhador do Retiro Santa Vóia, Fazenda Caiman).

Naquele momento não havia intenções conceituais de pesquisa acadêmica, porém, pouco tempo depois, conversando com uns amigos sobre meu entusiasmo com o trabalho das Comitivas, trouxeram-me uma reportagem, capa da revista Terra. O título dizia: “Pantaneiro, um ser em extinção” (FRUET, 2004). O senhor que aparecia na capa era o pai da pessoa que me mostrava. O que me chamou a atenção foi que, na mesma época, em outra revista, li o comentário de pesquisador do Grupo de Estudos de Agronegócios da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul) afirmando que “Não há dados disponíveis, mas as comitivas de boiadeiros estão diminuindo e, no futuro, deixarão de existir”. (BRUM, 1998).

Daí em diante foram mais e mais investigações, sempre constatando a falta de dados sobre os boiadeiros, principalmente, no que se refere às publicações científicas. E não obstante seja possível encontrar pesquisas sobre modos de vida de peões de fazenda pantaneiros, com similaridades ao modo de vida dos boiadeiros, estes executam outros trabalhos e possuem costumes diferentes [6].

Como o boiadeiro costuma trabalhar informalmente (sem contrato de trabalho ou registro em carteira) e as Comitivas são itinerantes, é difícil obter dados estatísticos sobre sua ocorrência e, além disto, não costumam ser foco das problemáticas debatidas. Aparecem envolvidos em uma conjuntura econômica centralizada na discussão sobre o desenvolvimento da pecuária.
Em uma pesquisa historiográfica, onde foram analisadas as Comitivas de boiadeiros no Pantanal afirmou-se que, embora os boiadeiros ocupassem – e ainda ocupam – papel destacável na introdução e expansão da pecuária, sua presença na história é precariamente tratada, as informações são esparsas e pouco expressivas. O autor expõe, retoricamente, que apesar de ser tema recorrente entre poesias e músicas, é de forma indireta que a maior parte da bibliografia se apresenta: é comum encontrar boiadas, não boiadeiros (LEITE, 2003).

Estes dados chamam atenção por evidenciarem a escassez de dados disponíveis, mas também se apresenta como assunto emergente devido à ocorrência de mudanças que podem acarretar na perda do conhecimento deste segmento culturalmente diferenciado das populações tradicionais brasileiras. Acredita-se que o assunto pesquisado possui significativo valor no que diz respeito a uma forma de manejo [7] exercida por um conhecimento tradicional, aplicado há centenas de anos, e que no Pantanal, devido a seu regime de alagamento é, muitas vezes, a única alternativa de transportar o gado de uma região para outra.

Em referência à importância de pesquisas sobre populações tradicionais e os motivos pelo quais devemos estar atentos a esse conhecimento, podemos citar Marques (1999, p. 141), que conclui sobre seus estudos referentes a populações tradicionais:

[…] o foco das minhas preocupações, neste agora, concentra-se no fato de que esse conhecimento – chamemo-lo de nativo, tradicional, indígena ou como queiramos! – existe, resiste e está ameaçado. Esse conhecimento, além de extremamente útil, revela compatibilidade como a nossa ecologia – e no que ele não for compatível, muitas vezes trata-se apenas de uma questão de incomensurabilidade. Pois bem, esse conhecimento pode desaparecer. (…). Trata-se, na realidade, de um conjunto de sistemas de conhecimento altamente ameaçado de extinção e é isto o que mais me preocupa.

Em março de 2007, acredito que devido, principalmente, ao enfoque desta pesquisa, ganhei uma bolsa de estudos para o curso de um mês em um colégio na Inglaterra – Schumacher College [8], cujo tema era “Indigenous peoples & the natural world: Is ancient wisdom important to the modern world?”. Participaram pessoas de diversos países: Índia, Noruega, Austrália, EUA, Alemanha, Bélgica, Filipinas, entre outros. Só a existência deste curso e a representação de tantos países, já remete a relevância da discussão.

Um dos palestrantes, fundador do Fórum Social Mundial, Jerry Mander, colocou que embora a globalização exerça forte pressão para homogeneização do conhecimento, e o conhecimento indígena/tradicional [9] signifique assim, uma visão atrasada na ótica do capitalismo e até mesmo um impedimento ao “progresso”, ele afirma que a diversidade é a chave da vitalidade, resiliência e capacidade inovativa de qualquer sistema vivo. Isto vale também para sociedades humanas (informação verbal)10. Ainda segundo, Cavanagh; Mander (2004, p. 89):

The rich variety of human experience and potential is reflected in cultural diversity (grifo do autor), which provides a sort of cultural gene pool to spur innovation toward ever higher levels of social, intellectual, and spiritual accomplishment and creates a sense of identity, community, and meaning.[11]

No caso, a cultura pantaneira e em particular as Comitivas de boiadeiros representam uma atividade em que se realiza o transporte de espécies exóticas, o gado, inserida em determinadas paisagens [12]. Estão expostas as influências do mundo exterior; mudanças ocorridas em seu meio, que podem alterar seus valores e atitudes e ao mesmo tempo, mudanças que podem advir do próprio homem, da sua criação, pois é um ir e vir que faz do sujeito a sua existência, estando no mundo e com o mundo.

Compreende-se que estas relações construídas entre homem e ambiente muitas vezes são contraditórias e exprimem práticas que podem tanto contribuir para conservação como degradar o meio em que vivemos. Admite-se então, que há impactos ambientais gerados pela atividade pecuária, assim como pelo movimento destas boiadas, mesmo no Pantanal, onde há extensas áreas de pastos nativos. Entretanto, nesta pesquisa não se pretende aprofundar sobre este tema, mas expor um pouco da complexidade do conhecimento dos boiadeiros que ocorre através do convívio com as paisagens pantaneiras.

Face às diferentes visões do homem, se buscou inserir neste fenômeno e perceber uma forma de manejo tradicional, como prática que está diretamente conectada ao ciclo das águas do Pantanal. Procurou-se descrever sobre o modo de vida dos boiadeiros e a estrutura desta atividade ligada a uma forma de leitura das diferentes paisagens do Pantanal, levando em conta a temporalidade dos acontecimentos e a dinâmica da sociedade.

O acolhimento deste projeto no Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM) pode me auxiliar justamente na visão interdisciplinar de pesquisa que o entendimento deste tipo cultural – o boiadeiro do pantanal – poderia ter. Pela minha formação em ecologia e crescente interesse em ciências humanas, o diálogo entre esses campos foi favorável ao tema pesquisado.

Este trabalho era para ser fundamentado através do acompanhamento presencial de Comitivas, mas no segundo semestre de 2007 sofri um grave acidente a cavalo e tive que interromper meus estudos por um ano e meio. No início do ano de 2009 renovei minha matrícula, mas por causa do meu estado de saúde, infelizmente, não foi possível acompanhar outras Comitivas, acarretando algumas alterações nos objetivos iniciais da pesquisa.

Uma pesquisadora no ambiente de trabalho masculino

Quando recebi a sugestão do comitê do PROCAM para escrever sobre o desafio da pesquisadora num contexto de pesquisa tipicamente masculino, apesar de saber da sua relevância, senti-me um pouco constrangida. Talvez pelo respeito com que os boiadeiros sempre me trataram ou talvez mesmo pela curiosidade latente e decorrência do trabalho, não havia parado para pensar sobre isso. Porém esta pergunta era recorrente quando expunha a pesquisa em diferentes âmbitos acadêmicos, afinal numa pesquisa com métodos qualitativos e dialógicos, essa questão pode ter fundamento, uma vez que se considera que a intersubjetividade é um assunto essencial.

A questão central da pergunta era pertinente, principalmente no que se refere à operacionalidade do acompanhamento das Comitivas e a interação/ tensão pesquisador, pesquisado durante o convívio e entrevistas com os boiadeiros. Como seria pra eles relatar o que vivem ou sentem, para uma mulher, e como seria se o fosse para um homem?

Acredito que por esta condição perdi algumas histórias e relatos, mas sei também que ganhei outros. O respeito que tive por eles foi sempre correspondido, e se em um primeiro momento eram mais fechados, no decorrer da Comitiva ou da entrevista ficavam cada mais familiarizados comigo e com meu compromisso de valorizar os saberes que relatavam, falando mais dos familiares e das dificuldades em suas vidas.

Sempre muito cuidadosos, davam-me o burro mais manso da tropa para montar e mesmo tendo o hábito de revezar seus burros para descanso, não quiseram, em nenhum momento trocar minha montaria. Apesar de estar acostumada a encilhar cavalos, nas viagens eu somente os auxiliava, pois queriam encilhar os animais para que estes estivessem bem seguros. Na primeira Comitiva, este cuidado foi tanto, que preocupados que eu sentisse dor por permanecer tanto tempo sobre o cavalo e com a intenção de deixar meu arreio mais confortável, ao invés de colocarem apenas um pelego [13] sobre o mesmo (como de costume), quiseram colocar dois e infelizmente o efeito foi o oposto. Então, no ponto de almoço, pedi gentilmente para que retirassem um dos pelegos e mesmo não estando acostumada a andar o dia inteiro a cavalo, como andava com frequência, fiquei cansada, mas não tive nenhuma indisposição física.

Por eu querer conhecer um pouco de cada função na Comitiva, procurei não concentrar a atenção em uma só pessoa, a não ser que fosse alguém com mais experiência, mais velha, normalmente líder do grupo. Apenas durante a primeira Comitiva, não fui a única mulher que estava viajando, pois uma amiga, Elizabeth Leite (Bete), que também trabalhava na Pousada Caiman, quis ir conosco e assim, pudemos compartilhar algumas situações.

Acabei por participar de poucas Comitivas, por motivos alheios a minha vontade e talvez, muito destes momentos tenham ocorrido com certa naturalidade por meu interesse nesta pesquisa ter surgido da relação com a experiência de meu avô materno e por já conviver, um pouco com a cultura dos peões pantaneiros. No que se refere às relações de classe, talvez por este motivo, também não senti que houvesse distanciamento ou diferenciação por ser pesquisadora. Na primeira Comitiva, realmente não estava nesta condição, mas mesmo durante as outras Comitivas, o que pude observar foi uma diferenciação cultural por ser de outro Estado, ou por ser “da cidade”, e em alguns momentos notei que buscavam explicar-se melhor para que eu pudesse compreendê-los.

Porém é interessante colocar, que minha relação com os boiadeiros foi mais marcada pela relação de gênero. O trabalho que executam é predominantemente ocupado pela mão de obra masculina [14], e pode ser que pela falta de costume com a presença feminina neste ambiente, havia todo o tempo, um excesso de zêlo e uma visão fragilizada da mulher. E assim, ficavam também surpresos por eu conseguir acompanhá-los.

Sobre questões mais difíceis de compreender para quem não tem uma imagem sobre a vida dos boiadeiros gostaria de partilhar um pouco desta relação assimétrica e heterogênea entre pesquisadora e pesquisados.

Para dormir numa comitiva, como dormem todos juntos, em redes individuais, não houve nenhum problema e estranhamento, mas para necessidades fisiológicas, como era ao ar livre, eu apenas esperava a Comitiva seguir, ficando para trás, buscando alguma moita e cuidando bem para meu burro não fugir! Já para tomar banho, talvez tenha sido o momento mais delicado. Fui preparada, levando traje de banho discreto, para tomar banho com eles em algum açude, rio, ou onde quer em que houvesse água disponível. Mas percebi que eles não queriam que eu fosse junto, pediam sempre para que eu fosse antes, que assim seria melhor. Por muitas vezes, também, quando estávamos chegando ao pouso, e se ocorria de estarmos próximos a alguma sede de fazenda, eles acabavam perguntando ao praieiro [15] se havia algum banheiro disponível para banho, e antes mesmo de conversar comigo, já ficava tudo combinado.

Procurei aceitar o que me estavam orientando, pois eles ficariam mais à vontade e eu não os incomodaria. E assim, com cuidado, respeito e delicadeza, essas questões foram sendo resolvidas. Nos capítulos que seguem, um pouco mais sobre o perfil destes homens será relatado.

Estrutura dos capítulos

Para organização desta pesquisa, optou-se por dividí-la em capítulos. No primeiro capítulo apresenta-se breve contextualização do Pantanal e a formação do homem pantaneiro por meio da revisão da literatura sobre a região de estudo. Para maior familiarização ao assunto, foi feita uma introdução sobre estas paisagens relacionadas ao ciclo das águas, o que influencia diretamente na definição de roteiros das Comitivas. Em seguida, é retratado, de forma sucinta, o processo de ocupação e a consolidação da pecuária no Pantanal.

Ainda neste primeiro capítulo, busca-se retratar o marco conceitual e o caminho traçado neste estudo. O marco conceitual foi elaboradao a partir de uma abordagem sobre a interpretação cultural da paisagem como lugar no contexto de populações tradicionais. Já a trajetória metodológica se deu inicialmente, a partir de interrogações [16] voltadas aos sujeitos que vivenciam o fenômeno [17], ou seja, os boiadeiros no Pantanal Sul Matogrosssense. Posteriormente, por meio de coletas de entrevistas, histórias de vida, acompanhamento presencial de Comitivas, estes dados foram sendo construídos, analisados e tematizados (capítulos II, III, IV), compondo os elementos para buscar esboçar o universo cultural do boiadeiro de acordo com o recorte ao que se pretendeu pesquisar, ou seja, sobre seu modo de vida e as leituras das paisagens pantaneiras.

O segundo capítulo: Comitiva de boiadeiros – modo de vida está dividido em três subtemas. No primeiro, Viajantes do estradão foi feita uma descrição sobre o modo de ser boiadeiro. O segundo tema: Na batida das Comitivas de boiadeiros, trata-se de como ocorrem estas Comitivas, e o terceiro: Puxando a boiada, atenta-se para a divisão de ofícios nas Comitivas.

No terceiro capítulo: Comitiva pantaneira é dada a descrição sobre a leitura da paisagem. A partir do tema: Na Batida do estradão: Marcos referenciais nas paisagens, são tratados os significados atribuídos às paisagens pantaneiras. Já no tema: No ritmo das águas, são abordados os significados dados às estações sazonais, de acordo com a definição de trajetos nas Comitivas.
No quarto capítulo propõe-se Aproximações para uma conclusão, incluindo algumas reflexões acerca dos dados reunidos, bem como a importância e valorização do conhecimento dos boiadeiros. Por ser um assunto identificado como recorrente, também se procurou tratar sobre quais motivos têm levado às transformações recentes neste trabalho humano ou até mesmo o seu declínio, suas consequências e contradições. No último capítulo estão apresentadas as considerações finais, onde se procurou apontar as contribuições e limites deste trabalho, sugerindo novas linhas de pesquisa sobre o tema.

Todos estes temas e capítulos se interpenetram, porém são focados em grandes áreas, que procuram adentrar aos poucos ao mundo dos boiadeiros. Mundo este que se torna utópico a ser desvendado à medida que se conhecem cada vez mais as habilidades exigidas para este trabalho e suas dificuldades, mas não menos passível de apreender elementos que demonstrem uma relação de interdependência entre homem e ambiente.

CAPÍTULO 1 – O CAMINHO TRAÇADO NA PESQUISA

No pantanal ninguém pode passar a régua. Sobre muito quando chove. A régua é existidura de limite. E o pantanal não tem limites. (…).
O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai o garoto pelo piquete com olho de descobrir. Choveu tanto que há ruas de água. Sem placas, sem nome, sem esquinas. (…).
A pelagem do gado está limpa. A alma do fazendeiro está limpa.
Manoel de Barros (1990: 237).

Fig. 9 – Ciclo das águas e boiadeiros no Pantanal-MS. (À esquerda seguindo o sentido da seta: 1. Enchente: Ponte sobre o Rio Miranda. Segunda Comitiva. 2.Cheia: Travessia Rio Cerradinho. Segunda Comitiva. 3. Vazante: Ponteiro Morcego. Primeira Comitiva. 4. Seca: Saída de Comitiva da Fazenda Fátima). Montagem das fotos: Juliana Moreno.

1.1 Contextualização do tema de estudo

1.1.1 O Pantanal

É fundamental explanar sobre a dinâmica complexa nas paisagens do Pantanal, para que também se desvele o modo de vida e a leitura da paisagem pelos boiadeiros, pois estes são assuntos considerados interdependentes. É assim que afirma Proença (1997, p.72):

No Pantanal tudo depende das águas. São elas que condicionam os diversos tipos de lida, levam o homem a ter necessidade de mudanças nas grandes enchentes, modificam os solos, obrigam certas aves a migrar para outros lugares do planeta, empurrando o gado para cima das cordilheiras, quebram a monotonia da planície, ilhando muitas fazendas.

O Pantanal é a maior planície inundável do mundo. Sua área total é de 210.000 Km2, abrangendo o Brasil, a Bolívia e o Paraguai. Deste total, 138.183 Km2 estão no Brasil, ou seja, cerca de 70% ocorrem distribuídos entre os Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. (ALHO; LACHER JUNIOR; GONCALVES, 1988). Neste último Estado, presente área de estudo, o Pantanal corresponde a 89.318 km2, equivalendo a 64,64% da área total do Pantanal no Brasil (ABDON e SILVA, 1998).

Ab’Saber (1988), discorre sobre a origem do Pantanal Matogrossense, propondo a teoria de que o que hoje é uma depressão teria sido no passado uma vasta abóbada de escudo, que funcionava como área de fornecimento de materiais detríticos para as bacias sedimentares do Grupo Bauru (Alto Paraná) e Parecis, formada até o Cretáceo. Durante o soerguimento pós-cretáceo teria ocorrido então, uma desestabilização tectônica, devido a falhamentos estruturais facilitando seu aplainamento e assim, comportando-se, como anticlinal esvaziada. Atualmente, o Pantanal Matogrossense se caracteriza por extensas planícies de acumulação de sedimentos fluviais.

A planície pantaneira faz parte da Bacia do Alto Paraguai, que possui área de 496.000 km2, sendo ainda parte integrante da Bacia do Prata. Está sujeita a um regime das águas fortemente sazonal, com precipitação média de 1.396 mm, variando entre 800 e 1.600 mm. A declividade dos rios é de 0,1 a 0,3 m/km com um gradiente topográfico de 0,3-0,5 m/km na direção leste-oeste e 0,03-0,15 m/km na direção norte-sul. As altitudes na planície variam de 80 a 150 metros (AGÊNCIA NACIONAL DAS ÁGUAS, 2003).

De acordo com a classificação de Köeppen o tipo climático desta região é Aw, apresentando dois períodos distintos: chuvoso (outubro a março), quando ocorre cerca de 80% do total anual das chuvas e seco (abril a setembro). A temperatura média anual do ar é de 25,5oC, com médias mínimas e máximas de 20oC e 32oC, respectivamente (SORIANO, 2002).

Existe um atraso de aproximadamente quatro meses entre o pico da cheia do norte e do sul do Pantanal, o que faz com que a estação seca vigore na porção norte do Pantanal enquanto o nível das águas atinge seu pico na porção sul. Os níveis da água no norte são extremamente variáveis, subindo e descendo em resposta direta ao volume de chuvas. Os níveis da água no sul, por outro lado, aumentam e diminuem mais suavemente ao longo dos anos, devido à retenção natural da inundação que amortece as flutuações causadas pelas chuvas intensas Heckman [18] (1999 apud HARRIS et al., 2005).

Os períodos mais frios, bem como a duração da estiagem são diferentes e imprevisíveis de ano em ano, resultando em fortes pressões sobre as populações animais e vegetais. Apesar disso, o solo hidromórfico e a forte inundação anual, que estende bastante dentro da seca, amenizam os efeitos dessas variações, pelo menos para parte dessas populações. (BROWN JUNIOR, 1984). Ou seja, enquanto algumas espécies se adaptam à constante mudança e sobrevivem às extremas condições, outras definem seus ciclos de vida de acordo com as estações.

Mapa 1 – Sub- Regiões ou “pantanais” do Pantanal: Bacia do Alto Paraguai no Brasil. Fonte: Silva; Abdon (1998).

A vegetação é heterogênea e influenciada por quatro biomas: Floresta Amazônica, Cerrado (predominante), Chaco e Floresta Atlântica. Adamoli [19] (1981 apud HARRIS et al., 2005). Segundo Silva et al. [20] (2000 apud HARRIS et al, 2005), um levantamento aéreo do Pantanal brasileiro identificou 16 classes de vegetação com base nas fitofisionomias, sendo os campos a fisionomia mais representativa (31%), seguida do cerradão (22%), cerrado (14%), campos inundáveis (7%), floresta semidecídua (4%), mata de galeria (2,4%) e tapetes de vegetação flutuante ou „baceiros‟ (2,4%).

É devido a este mosaico de fisionomias vegetais que a região é considerada como Complexo Pantanal, sendo declarado Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, 2009). Sua importância também está estabelecida na Constituição brasileira, no artigo 225, § 4o, sendo reconhecido como Patrimônio Nacional.

As principais razões pelas quais o Pantanal merece este reconhecimento internacional podem ser elencadas em: trata-se de um complexo de ecossistemas únicos no mundo; constitui o habitat de espécies animais e vegetais diversificadas, muitas delas consideradas raras e algumas em processo de extinção; é protegido nacionalmente; pertence e tem influência sobre mais de um país; revela em muitos aspectos uma sociodiversidade peculiar dada ao processo histórico de formação sócio-espacial. Essa formação é conhecida popularmente como a cultura do pantaneiro – por seu trabalho, culinária, vestuário, costumes, festas, suas manifestações artísticas e religiosas. (WERTHEIN, 2000).

1.1.2 O homem pantaneiro e a pecuária

 

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