25 ago

Cláudio Kahns – Filme A Travessia Brasil & China

O desafio e a honra de realizarmos um projeto como A Travessia, concebido pelo fotógrafo/cineasta chinês Yanjun Zhang, foi o que provocou de imediato meu interesse, desde o primeiro minuto que me foi relatado pela amiga Miriam Lerner. Por que desafio? Um projeto cultural desta monta entre dois países gigantes, ainda que geograficamente distantes, têm muito em comum nos dias de hoje.

A globalização aproximou os dois países não só através dos Brics, mas a intensificação do intercâmbio comercial e industrial merece correspondência cultural à altura. A Travessia pode ser este projeto que agrega a esta conjuntura, promovendo interação entre nossas culturas. O projeto certo na hora certa!

A China hoje é o maior parceiro comercial do Brasil. O comércio entre os dois países não para de bater recordes, de janeiro a setembro de 2021, o intercâmbio comercial superou a marca histórica registrada em todo o ano de 2020, alcançando mais de US$ 100 bilhões. Há de haver um espaço privilegiado para a cultura em meio a tal exuberância nas trocas comerciais.

A indústria cinematográfica deu também um salto enorme no Brasil nos últimos anos. Apesar da burocracia dos órgãos oficiais, temos a grande chance de impulsionar nosso projeto, digo nosso! pois a camaradagem que se estabeleceu no grupo que está desenvolvendo o projeto, Marta Nehring como roteirista, Miriam Lerner e Flavio, sob a liderança de Zhang, tem buscado nas nossas reuniões superar um paradoxo: a compreensão mútua das diferenças e das comunicações entre as culturas. Mas é exatamente disso que se trata. Precisamos aprofundar o conhecimento das diferenças e encontrar aquelas que podem ser melhor traduzidas ou adaptadas, para tornar nossa história mais atraente para os produtores chineses (mas não só para eles). Como o feng shui, por exemplo, certamente há outras características da cultura chinesa que podem ser incorporadas e contribuir para tornar a estória mais próxima ao público chinês. Porém, nossa roteirista Marta não é chinesa e não conhece muitos detalhes da cultura chinesa que certamente enriquecerão o enredo. Será fundamental iniciarmos a colaboração de um co-roteirista chinês.

Temos um enredo muito interessante e completamente conectado ao momento, a sustentabilidade ambiental, a amizade entre os povos, associados à viagem dos nossos dois protagonistas, um chinês e um nativo, ao Pantanal brasileiro. O filme vai tratar da integração entre esses dois parceiros, submetidos às duras condições em uma região que concentra altos índices de riqueza na fauna e da vegetação brasileira, bastante diferente da Amazônia. O regime das águas rege a vida dos pantaneiros. O

filme estará inserido no grande problema planetário da atualidade, o aquecimento global e sua repercussão num ambiente natural de extrema riqueza.

Vamos trabalhar esse contexto e as condições que apresenta o roteiro, de forma a atrair não só o público chinês mas, também, revelar para os brasileiros que a aproximação com uma cultura muito diferente da nossa não só é possível, como é desejável.

Vamos buscar o apoio dos órgãos públicos brasileiros, vamos atrair empresas brasileiras e chinesas através dos incentivos fiscais. Estes serão nossos parceiros patrocinadores: as grandes empresas chinesas que se instalam no Brasil e as grandes empresas brasileiras que têm interesses na China. Desta troca imensa, há um desejo de dois povos se comunicarem, por meio de uma narrativa baseada em experiências e pessoas reais.

Zhang propõe uma estória com potencial para inspirar a produção de um grande filme épico entre os dois países. Vamos juntar os talentos brasileiros e chineses e vamos encontrar o melhor enfoque, inicialmente com um intenso trabalho dos roteiristas que certamente criarão uma estória que vai apaixonar os públicos de ambos países, mas não só, A Travessia poderá atrair público no mundo inteiro.

A Travessia entre os dois povos pode ser o início de uma grande amizade que trará muitos frutos. Estamos trabalhando com muito entusiasmo neste sentido e temos certeza que nossos parceiros chineses, atraídos ao projeto por Zhang, saberão entender estes aspectos. A presença de profissionais chineses altamente qualificados envolvidos na produção é fundamental para compreenderem o Brasil de uma forma mais próxima.

Há muitos anos produzi um filme, “A Marvada Carne”, que foi um tremendo sucesso no Brasil. Não acreditávamos muito na exportação do filme, entretanto ele foi convidado para a semana da crítica no Festival de Cannes e desta exibição fomos convidados para mais de 20 festivais internacionais em todo o mundo. O pessoal da embaixada chinesa em Brasília assistiu o filme, soubemos depois que eles comentaram que havia muitas similitudes nas lendas camponesas brasileiras com as chinesas. Foi uma enorme surpresa! Isso me deixa mais convicto que saberemos encontrar o formato que agradará ambos públicos.

A Travessia vai abrir uma avenida entre os dois países, vamos fazer desta travessia um grande filme com entusiasmo que vai comemorar a união entre dois povos tão distantes, mas ao mesmo tempo mostrar que a distância não conta, vamos estar mais próximos por onde passar A Travessia!

Cláudio Kahns
25 de agosto de 2022

13 jul

Argumento A TRAVESSIA (V_1)

Notas:

A roteirista (Marta Nehring) Pela consideração de escrever o roteiro, comprimiu ao mínimo a descrição do cenário natural, ou não escreveu nada.

No entanto, espero que os leitores do roteiro não esqueçam que o cenário dessa história é na região do Pantanal. Onde há vistas incrivelmente amplas e belas da natureza. Isso será totalmente apreciado depois que o filme for feito.

Além disso, este roteiro foi adaptado da experiência de Yanjun Zhang filmando um documentário no Brasil. Nos personagens, os caracteres são omitidos e alterados, e os dois para o Pantanal são fundidos em um. Além disso, há muitos lugares que são inconsistentes com os fatos históricos.

Em segundo lugar, o principal objetivo de gravação de vídeo de Yanjun Zhang – fotografar retratos e registrar a cultura dos lugares que ele visitou é muito trivial, então o argumento o omitiu. Esses, será devidamente expresso no roteiro.

Personagens principais

1- O fotógrafo

Hengqi Zhang, 60

Nasceu em uma cidade das Planícies Centrais (Shijiazhuang, Hebei), em uma família intelectual, seu pai era um “economista”. É o primogênito, tem mãe viva e dois irmãos (irmão taxista, irmã professora do ensino médio) e muitos primos. Seu pai morreu de um ataque cardíaco súbito quando ele tinha 22 anos, e ele não pôde ver seu pai pela última vez devido à guerra da linha de frente (Guerra China-Vietnã). Essa é uma mágoa que ele carrega.

Hengqi é casado com desenhista e tem 1 filha que cursa

biologia em Tóquio, Japão.

Caráter forte e determinado, disciplinado e metódico, fala pouco e tem boa escuta. É uma pessoa que procura sempre ser justa. Tem uma forte ligação com a natureza e com os animais. Seu comportamento é como o do Capitão do filme Dersu Uzalá. Tem um caderno de viagem no qual escreve um diário que vai se tornar o texto da exposição fotográfica na China. É um sábio.

Tem boa forma física apesar da idade, todos os dias pela manhã faz exercícios para se manter flexível e forte. Tem um problema na coluna que vai piorar durante a marcha a cavalo. Demora para se acostumar a dormir em rede.

Graduado pela Academia de Voo da Força Aérea, foi fotojornalista militar. Na época da Travessia, é editor do departamento de fotografia pictórica (criador de primeiro nível).
Especializado em fotografia de retratos de homens de meia-idade e idosos, Hengqi é um dos representantes chineses da fotografia de retratos de personagens. Depois de chegar ao Brasil, concentrou-se na fotografia de retratos em estilo documental.

Missão externa: Hengqi é um “mensageiro cultural” enviado ao Brasil para fomentar o intercâmbio cultural com a China, para isso deve registrar as condições de vida dos pantaneiros tradicionais que vivem da lida com o gado.

Missão interna: Hengqi precisa “limpar a face” por que na década de 1990, havia uma “nova onda de fotografia” na China, eles eram “críticos” compostos por um grupo de “freelancers”. Hengqi é um dos representantes chineses da fotografia de retratos e alvo dos ataques que o qualificaram como “fotógrafo da corte”, acusando-o de fazer políticos e não artísticos.

2- O pantaneiro

Alexandre Curvelo, 35

Nasceu numa fazenda, filho de boiadeiros, mãe e pai descentes de nativos da terra, negros e europeus.

Extrovertido, alegre, gentil. Alexandre está solteiro e gosta de ir ao baile para dançar. É meio namorador e se mete em algumas dificuldades quando as meninas no baile preferem dançar com ele aos rapazes locais.

É o brasileiro “típico”, de tez parda e cabelos escuros. Representa o Pantanal “de raiz”, nasceu e ama a cultura pantaneira.

Cursou até o ensino médio, tem um conhecimento que não aparece à primeira vista (ou seja, não é uma pessoa ignorante). Alexandre tem orgulho do que faz: ser boiadeiro é uma escolha (preferiu não imigrar para a cidade como muitos de seus amigos de infância). Conhece profundamente a região, sabedoria herdada de seus antepassados. Conhece também lendas e outras histórias do Pantanal.

Alexandre tem uma família muito numerosa: pai, mãe, irmãos e primos espalhados por todos os cantos. Onde quer que vá, ao longo da viagem, sempre encontra algum “parente”. Carrega a dor de ter perdido um irmão que se afogou diante dos seus olhos, atropelado por uma lancha de turistas quando nadavam juntos. Foi um acidente, porém Alexandre carrega a culpa de ter sobrevivido.

Missão externa: levar a boiada entre duas fazendas.

Missão interna: Proteger o Pantanal frente à ameaça da devastação e incêndios criminosos.

Argumento A TRAVESSIA

Ato 1: (verão)

Hengqi, 60, é fotógrafo. Tem um cargo oficial de prestígio, tendo deixado o exército devido a um acidente, ele queria voltar a ser fotógrafo, mas não era mais considerado um artista – era considerado um “oficial ultrapassado” (seja: teimoso, conservador e abandonado). Foram alguns episódios de escárnio público e Hengqi, que já tinha um temperamento reservado, se retraiu de vez. É um bom pai e marido, gosta da mulher e do filho, tem uma vida confortável, porém não está satisfeito consigo mesmo. Por fora aparenta força, poder, felicidade. Por dentro, sente-se fraco, inseguro e infeliz.

Hengqi já se acomodou nessa situação quando recebe a missão de fomentar o intercâmbio cultural com o Brasil. Ele deve aproveitar esta oportunidade, No Brasil, do qual os chineses nada sabem, foi tirada fotos chocante, E a combinação de fotografia e documentário (essa forma era a primeira vez na China na época), Talento para realizar uma exposição inigualável na China, e Salve cara.

Ele aceita o desafio de se deslocar até um país desconhecido, do qual nada conhece, e se prepara para a viagem: agencia a compra de um 4×4 bem equipado, material de acampamento, um bote inflável e demais traquitanas de que vai precisar para registrar as imagens e envia-las para a China. Leva também HDs. E, principalmente, um computador-tradutor IBM para conseguir se comunicar com os locais e realizar as entrevistas. Contrata um acompanhante, também chinês, tradutor oficial residente no Brasil. O que Hengqi vai descobrir, é que o tradutor entende muito de São Paulo, onde mora, mas nada do interior e muito menos do Pantanal.

A viagem começa no verão, entre dezembro e janeiro. Hengqi e o tradutor trocam suas impressões sobre os brasileiros. O tradutor aconselha-o a ter cuidado, os códigos são muito diferentes e no Brasil as pessoas são temperamentais.

Eles entram no Mato Grosso pelas estradas de asfalto. A paisagem está dominada pela cultura de soja. Visitam locais lindos, como a região de Bonito, porém são pontos turísticos que não o interessam. Passam por garimpos ilegais onde só há destruição. A paisagem não é aquela que esperava: a cultura cowboy americanizada, rodeios, o asfalto, os gigantescos maquinários agrícolas, as minas.

Em busca do pantanal nativo e das pessoas que vivem em contato com a natureza originária, Hengqi decide adentrar pelas estradas de terra. Agora sim chega no Pantanal que estava procurando. Começa a trabalhar, fazendo retratos e entrevistas nas vilas onde passa. Presencia uma linda festa do divino, seguida de um forró. No arraial encontra Alexandre,35, boiadeiro (seu futuro companheiro de viagem), que está visitando a ex-esposa e seu filho. Alexandre se mete numa encrenca depois da bebedeira. Hengqi fica mal impressionado.

É época das chuvas e naquele ano a água encheu rápido demais. Hengqi decide voltar para Cuiabá e tentar regiões mais secas. Porém o carro fica ilhado numa cheia inesperada.

Alexandre, que fora contratado para levar uma boiada dos alagados para as terras altas, no trajeto cruza Hengqi e o tradutor, que passaram a noite no carro.

Alexandre e outros peões tentam desatolar o carro, porém não há meios de tirar o carro da região antes da vazante que só acontecerá dali uns meses.

Alexandre ajuda Hengqi sem cobrar nada e ainda lhe faz um convite: ir com ele numa travessia a cavalo, acompanhando uma boiada: é o único jeito de conhecer de fato a vida tradicional dos pantaneiros.

Hengqi precisa escolher: espera ou confia em Alexandre? E será que ele vai ter saúde para dar conta de 3 semanas a cavalo?

Hengqi deixa o tradutor cuidando do carro e vai com equipamento mínimo. Só não abre mão da máquina de tradução, do carregador a bateria solar e, claro, do bote inflável. Como pesam muito, contrata algumas mulas extra para a travessia. O bote é essencial nos momentos em que cruzam os trechos mais fundos.

Ato 2 – (verão)

Eles cruzam lugares lindos, veem muitos bichos. O pantanal está coberto de água. A boiada precisa atravessar muitas lagoas até chegar no seco. Hengqi acompanha a lida dos peões e aprende com eles estratégias da vida local, como bichos, plantas medicinais como a sucupira, que ajudam a melhorar as dores sentidas por Hengqi por conta do cavalo e alguns cuidados elementares com carrapatos e mosquitos. Hengqi conhece as tradicionais “garrafeiras” da medicina popular.

Hengqi conta o significado da tartaruga no Feng Shui, fazendo Alexandre desistir do jantar (ele ia cozinha-la).

Hengqi apreende que as piranhas não são perigosas na época da cheia porque têm alimentação abundante e diverte-se nadando no rio junto com as crianças.

Se estabelece uma boa camaradagem entre Hengqi, Alexandre e os outros peões. Contam histórias e lendas que Hengqi registra, assim como conta para os brasileiros lendas camponesas da China. Eles veêm semelhanças entre as tradições populares dos dois países.

Alexandre se prontifica a ajuda-lo nas entrevistas. De tanto acompanhar as conversas, já sabe o que precisa perguntar. Hengqi não confia que pode dar certo. Ele é o autor, como delegar? Mesmo assim Henqi ensina Alexandre o uso básico da câmera filmadora.

A lida com o equipamento de tradução é complexa, mas Hengqi consegue fazer as suas entrevistas. Ele salva tudo no HD, mas precisa esperar a chegada numa fazenda com sinal de internet para enviar o material.

Uma linda e mágica noite de estrelas e vaga-lumes precede a chegada deles na fazenda.

Quando finalmente chegam, Hengqi não consegue fazer o upload. Decide enviar alguns HDS por um mensageiro, que terá de entrega-los ao tradutor.

Contudo, há rumores de ladrões de gado na região. Hengqi preocupado com os HDs.

Ato 3 – (outono)

Hengqi consegue falar com a esposa e o filho na China . esposa o lembrou de ter cuidado redobrado ao lidar com indígenas.

Ajudado por Alexandre, eles fazem excursões pelas fazendas próximas. E descobrem, escondidas num capão, cabeças cortadas de bois. Alexandre deduz que foram deixadas lá pelos ladrões, que esquartejaram o gado para vender clandestinamente a carne.

Alexandre leva Hengqi para conhecer uma fazenda de jacarés. Hengqi prova um jacaré assado na brasa e descobre que o gosto é uma mistura de galinha e peixe.

Visitam ninhal gigantesco. É outono e as aves negras estão nidificando. Hengqi decide ficar até a primavera para presenciar a nidificação das espécies brancas. Até lá terá muito tempo para percorrer a região e conhecer a fundo a sua gente. Ele tem certeza que a exposição na China será um sucesso.

O tempo se torna instável, a previsão é de uma grande tempestade. Não é algo normal para esta época do ano, porém faz parte das mudanças climáticas.

Eles conseguem chegar na fazenda. A tempestade se caracteriza pelas descargas de raios. Hengqi nunca imaginou que pudesse ver um espetáculo semelhante. O céu é recortado por descargas elétricas, a terra treme, parece o apocalipse. Extasiado, ele fotografa.

Vários raios caem ao redor da na casa, danificando os equipamentos eletrônicos, inclusive a máquina de tradução. Hengqi furioso consigo mesmo. A tradução ficou precária, a máquina falha. Alexandre e os peões riem das traduções equivocadas. Hengqi fica um pouco ofendido, porém é obrigado a rir também.

Será que Hengqi precisará voltar a São Paulo sem ter concluído o seu objetivo, que é registrar o Pantanal também na seca? Ele decide persistir, apesar da dificuldade da comunicação, a fim de completar o ciclo da natureza que marca a vida na região.

Para se acalmar, com mais frequência sai para passear sozinho, procurando inspiração na natureza. Ao fotografar o ninhal, vê um pequeno pássaro ser capturado por uma gigantesca sucuri. Hengqi preocupado, vê nisso um mau presságio.

Alexandre é encarregado de levar uma boiada para a fazenda próxima de onde se encontraram (e onde mora sua ex-mulher e o filho) e convida Hengqi para acompanha-lo mais uma vez. A viagem será no auge da seca, bem diferente da ida.

Surgem os primeiros sinais das queimadas trazidos pelo vento.

Ato 4 (inverno)

A travessia pelo Pantanal na seca revela uma paisagem na qual as águas correm por riachos estreitos e os peixes ficam presos em lagoas. Longas trilhas de areia se revelam no verde dos pastos.

Numa tarde, num pouso, Hengqi caminha pelo leito raso de um rio. Alexandre manda-o parar. Hengqi intrigado. Alexandre saca a faca e mira algo no fundo de areia, atira a faca e mostra o ferrão de arraia que acabou de cortar. Por pouco Hengqi não pisou, correndo o risco de um gravíssimo acidente devido ao veneno contido no ferrão.

A máquina de tradução quebra de vez e é abandonada num pasto.

A jornada pelos campos segue. Os dias são particularmente quentes. Não é mais possível se banhar nos rios, as piranhas nessa época tornam-se perigosas pela falta de comida. Numa tarde, ao cruzarem um braço de rio mais fundo, Alexandre sacrifica um boi adoentado para que a boiada possa cruzar sem perigo.

A chegarem num pouso, os fazendeiros recomendam que prestem atenção ao roubo de gado durante a noite. Agora os peões terão que se revezar na vigília. De primeira Hengqi não se sente concernido e vai dormir. Para ele não é fácil estar sem a máquina de tradução. Não sabe se as pessoas estão falando dele, desconfia que estejam mexendo em sua bagagem. Alexandre tem atitudes suspeitas, desaparecendo às vezes, misteriosamente, quando chegam nas vilas.

A falta da tradução, que a princípio atormentara Hengqi, afinal aproxima-o dos peões. Por não conseguir trocar palavras, os olhares e os gestos contam mais.

Uma das paradas fica na vila onde moram a ex-mulher e o filho de Alexandre, que está feliz com a perspectiva de rever o menino.

Não é fácil cavalgar nos dias de sol quente e ar seco. A poeira levantada pela boiada faz tossir. Cansado da viagem e do trabalho, Hengqi esquece uma recomendação que recebeu no início da viagem: procurar por carrapatos, que transmitem uma perigosa doença chamada febre maculosa. Seu corpo todo coça, mas ele acredita que seja resultado do ar seco, da poeira e da falta de banho.

Hengqi presencia um fazendeiro, ao longe, tocando fogo na mata com a ajuda de um trator que carrega uma bola de fogo.

As noites continuam belas, iluminadas pelas estrelas, a fogueira e as cantigas de violão. Hengqi ensina aos peões algumas músicas chinesas. Assim como ele não consegue pronunciar vocábulos com a letra “r”, os brasileiros também erram em várias palavras.

Ao longe, avistam com frequência a fumaça dos incêndios. Uma fina chuva de cinzas cai sobre o comboio. Estão todos preocupados e entristecidos. Hengqi sente-se mal, com um começo de febre, toma um antitérmico e segue.

A fumaça dos incêndios torna-se onipresente.

Quando finalmente chegam no arraial. Hengqi está muito mal. Com pintas pelo corpo e, para surpresa sua, pintas nas palmas das mãos e dos pés, que não eram visíveis pois usava luvas e botas para cavalgar. Quando Alexandre vê as manchas, entra em pânico: eles precisam correr para um hospital antes que a febre do carrapato evolua mortalmente.

Alexandre sai a cavalo até uma fazenda próxima para emprestar um carro e levar Hengqi à cidade.

Nisso o vento vira e as chamas dos incêndios se aproximam rapidamente do arraial. Instaura-se o corre-corre do salve-se quem puder, as pessoas desesperadas tiram as coisas de casa, selam os cavalos, enchem as charretes de pertences, soltam os animais e tocam os bois para longe, torcendo para que consigam fugir da morte.

Hengqi, apesar de adoentado, faz um esforço sobre humano, fica em pé, e vai em busca do filho de Alexandre que está num campo próximo enquanto a mãe do menino junta os pertences da família a fim de partirem dali.

A fumaça está cada vez mais densa, Hengqi, a mãe e o menino saem a pé, junto com os demais moradores.

Hengqi pisou em uma cobra venenosa, e a cobra se virou e mordeu suas botas de couro. Hengqi Parado ali, imóvel. A cobra cedeu e olhou para ele. Hengqi levantou lentamente o pé, a cobra saiu.

Onde estará Alexandre?

Por fim, quando Hengqi está no limite das forças, aparece Alexandre com um pequeno caminhão, o único veículo que conseguira emprestar. Sobem todos e conseguem escapar. Quando chegam na cidade, Hengqi está desacordado, com febre muita alta, e é levado de urgência para o hospital.

Quando finalmente desperta, Alexandre já partiu para cuidar da boiada. É uma experiência e tanto ficar nas mãos de pessoas com as quais mal consegue trocar duas palavras. Hengqi, antes orgulhoso, agora depende da bondade de estranhos. Porém os sorrisos são abertos e o jeito estranho dos brasileiros serem, explosivos e comunicativos, acaba inspirando confiança. Hengqi descansa, está em boas mãos.

Ato 5 (primavera)

De volta à China, Hengqi descobre nos HDs um material inédito, as entrevistas feitas secretamente por Alexandre, ao longo da travessia, depois que a máquina de tradução quebrou. Não apenas entrevistas, mas também filmagens de bichos, lugares e do próprio Hengqi. Estão esclarecidos os misteriosos sumiços de Alexandre e a sensação de que havia alguém mexendo em suas coisas.

Saudoso, Hengqi pega o telefone e liga para o amigo brasileiro. Para sua decepção, o telefone não atende.

Chega o dia do vernissage: colegas fotógrafos críticos de arte estão ali, as pessoas prestaram mais atenção a esta viagem de “exploração cultural” e ficaram chocadas e aplaudidas. Hengqi conseguiu o que queria e ser reconhecido como um mensageiro cultural insubstituível.

Toca o celular, por uma feliz coincidência é um número do Brasil. A alegria logo se transforma em surpresa e tristeza: a ex-mulher de Alexandre avisa que este sofreu um acidente de carro e está hospitalizando, correndo risco de vida.

Aeroporto da capital de Pequim: A senhora na verificação de segurança da fronteira pegou os documentos de desembaraço aduaneiro de Hengqi e perguntou: “Você é brasileiro? Ou chinês?”, “Chinês e brasileiro também”.

No hospital, Hengqi chega. Alexandre está entre a vida e a morte. Após uma longa vigília, os sinais vitais voltam. Alexandre vai sobreviver. O pantanal está em flor: é primavera.

13 jul

Copywriting do documentário “A Travessia”

(Março de 2012, São Paulo, Brazil)
(Versão PDF)

2012 color digital 8☓40 min
Legenda Chinês, eletrônica em Português

Script: Yanjun Zhang
Tradutor: Link Zhang e Viviana Zhang
Narração: Linjie Xiao

Sinopse: Jornalista e fotógrafo chinês Yanjun Zhang enfrenta mil e um obstáculos e armadilhas de pessoas má intencionadas durante a sua jornada fotográfica à Amazônia. Diante de inúmeras mudanças de planos e séries de contratempos, transitou o foco para o crescimento e educação dos filhos. O documentário revela o brilhantismo humano diante da “mistura étnica” através da transformação do Sonho à Amazônia para uma família brasileira experienciada pelo fotógrafo Yanjun Zhang.

Ideia principal: Yanjun Zhang foi o primeiro fotógrafo chinês a falar sobre a integração brasileira dos migrantes. No Brasil, as conquistas por um “descobridor” tornava-se uma temática de expressões artísticas cada vez mais recorrente. No seu documentário de 320 minutos “A Travessia”, Yanjun Zhang mais uma vez narrou, cheio de paixão, essa história pouco conhecida. Os personagens centrais da história são Yanjun Zhang e sua esposa Linjie Xiao. Em 2000, a autorização do Ministério da Cultura da China para introduzir expressões artísticas latinas-americanas e de samba para o cenário chinês. Nessa época, o Brasil já abrigava cerca de 250 mil chineses continentais, vindos de formas clandestinas e sem identidade, trabalhando, aqui, com negócios de contrabando e vendas de pequeno porte. A ideia que o Brasil tinha acerca da China ainda se resumia na Rota da Seda como descrita por Marco Polo. Assim que pousaram em São Paulo, o casal imediatamente comprou os direitos de apresentação de uma conhecida escola de samba para aquele ano, planejando assim o “Carnaval com tematização chinesa”. Eles deram início a uma série de eventos que estabeleceram a “frente cultural oriental”. Primeiramente, fundaram em São Paulo a Revista Recurso, estabelecendo em conjunto à Administração Geral da Imprensa e Publicações da República Popular da China um canal binacional de negociações para direitos autorais literários. Laboriosamente, administravam a fortaleza transcultural. Mesmo quando os feitos de Yanjun Zhang acabaram ganhando a confiança dos brasileiros, não colocou a mente para estudar a comercialização de bens culturais, nem como aumentar a sua capacidade de sobrevivência baseada nas experiências obtidas. Assim, mesmo depois de dez anos – em 2010 -, Yanjun Zhang e sua esposa ainda não conseguiram se firmar, retornando, assim, à China.

Introdução

Em 1999, o Ministério da Cultura da China decidiu introduzir apresentações de samba. Para isso, designou-me para realizar estudos de campo no Brasil. Aproveitando a oportunidade, Yanjun Zhang planejou, então, a sua filmagem da Amazônia. Assim, viemos ao Brasil juntos.

I. Chegando com pé esquerdo

Pisando em solo brasiliense, não falávamos português. O tradutor era um imigrante chinês que o consulado chinês recomendou. Por precaução, Yanjun Zhang contratou mais tarde, por diversas vias, adicionais quatro tradutores. Ao longo das visitas e apresentações das escolas de samba na China, Yanjun Zhang travou a mira no Carnaval, decidindo documentar aquilo em filmagem. O Carnaval no Brasil ocorre de forma anual, tendo as filmagens monopolizadas pela Rede Globo. Para conseguir uma espécie de passe de filmagem, fundamos em São Paulo a Revista Recurso [ref]“RevistaRECURSO” é uma revista cultural, ISSN 1994-4314. A revista tem como objetivo publicar e divulgar pesquisas sobre questões sociais contemporâneas, publicando artigos severos de nível acadêmico em linguagem compreensível para os ativistas sociais. Este esforço alia-se ao programa de divulgação simultânea de imagens do fundador e a outras atividades com o mesmo propósito.[/ref], compramos os direitos de apresentação de uma escola de samba [ref]G.R.E.S. Águia de Ouro.[/ref], contactando grupos da China especializados em dança do leão, Yangge, pipas, entre outros. Com isso, organizaram o enredo “Quem Tem Olho Grande Já Entra na China”, baseado na cultura imperial chinesa. Seguindo o cronograma da organização do Carnaval, todas as escolas apresentaram seus desfiles em ordem. Descobrimos, então, que todos os artistas chineses que contactamos foram substituídos por imigrantes chineses locais. O diretor da escola de samba Sidnei Carriuolo Antonio ironizou: “você tem cinco tradutores. Deveria perguntar a eles.”

II. Mudança de planos

Durante o contato com a escola de samba, entendemos que o Carnaval é uma “Festa” brasileira. Além disso, existem diversas “Festas” que ocorrem de diversas formas. Estas Festas servem como um instrumento de harmonização para a sociedade brasileira, servindo um papel importante no cotidiano brasileiro. Inconformado com os prejuízos sofridos no Carnaval, Yanjun Zhang formulou outro projeto, com intuito de descrever elementos culturais simbólicos brasileiros como Samba, Futebol, Café e Churrasco através da método da imagem perceptiva [ref]O método da imagem perceptiva é um método de fotografia fundado por Yanjun Zhang, que pressupõe a previsão racional, através da aquisição “envolvente” e captura rápida em gravação “não planejada”. Esse método pode lidar efetivamente com situações repentinas, combinando narrativas perceptivas para criar imagens à mão livre com recursos documentais. A “Imagem sensual” e o “filme de imagem” constituem o conceito de gravação de imagem de Yanjun Zhang. (Veja os documentários “巴西艳情”, traduzido como “Brasil Erótica” e “天杰地灵”, traduzido como “Paraíso do Mistério”)[/ref], produzindo a série documental Charme da Cultura[ref] O Charme Cultural é um projeto de comunicação em vídeo. Como estudo de caso, a comparação cultural e novo método de filmagem, o objetivo é usar o vídeo de gravação perceptual de Yanjun Zhang para explorar a influência da cultura étnica e sua herança no desenvolvimento da sociedade humana e descrever o poder da cultura. (site do projeto: https://charmculture.org)[/ref], sendo distribuída na China. Dessa vez, Yanjun Zhang não contratou tradutores. Ao invés, utilizou a máquina de tradução [ref]Um tradutor de texto desenvolvido por Yanjun Zhang que permite tradução entre oito idiomas diferentes. O tradutor foi posteriormente atualizado para intérprete simultâneo e tornou-se um projeto de cooperação comercial entre Yanjun Zhang (BOA Company) e o Polycom Bank of America.[/ref] desenvolvida na China, comunicando-se através de texto escrito. Ele pediu a encomendação de um jeep customizado com a Chrysler US, comprando no Brasil veículos todo-o-terreno Chevrolet e utilitário Ford, além de equipamentos de aventura. Yanjun abertamente recrutou uma comitiva de três brasileiros, todos fotógrafos. Foram instalados múltiplas câmeras por veículo, gravando de forma panorâmica e ininterrupta, registrando a filmagem final em um central de registros através de conexões via rádio. A equipe foi, então, formada. Três veículos, sendo o último da coluna o jeep todo-o-terreno de Yanjun Zhang. Partindo de São Paulo, passando por Santos e Peruíbe, o trajeto continua rumo ao sul, seguindo o litoral Atlântico.

III. Colheita inesperada

Paramos em Cananéia. Trata-se de uma pequena cidade, antigamente indígena e cercada pela linda praia intocada do Oceano Atlântico. A música dos fandangueiros atraiu atenção de Yanjun Zhang. Rapidamente que sua mente estava a delírio. Sua capacidade profissional e a atitude sincera logo conquistou a confiança da população local. Eles contaram ao Yanjun Zhang sobre os garimpeiros que chegaram à Cananéia no século XV e também forneceram um mapa desenhado a mão. Segurando esse mapa com a rota dos garimpeiros, ele exclamou com animação: “Era isso que eu estava procurando…”

IV. Uma família de três

Deixando a Cananéia, o caminho seguiu-se pela estrada meandrosa. Decidimos explorar a porção ocidental brasileiro, em busca dos Pantaneiros descendentes dos garimpeiros. Adentrando em uma região de bacia de água doce, um acidente de carro encalhou-no em Blumenau. O automóvel danificado foi enviado para conserto na melhor oficina da cidade. Os mecânicos nunca viram algo similar, estudando ao mesmo tempo que trabalhavam, por aproximadamente um ano. Nesse meio tempo, nasceu o nosso filho Link, colocando uma pausa na jornada. Blumenau é uma cidade localizada no meio de um vale, cujos habitantes possuem forte descendência alemã. O símbolo da cidade é o evento anual do Oktoberfest, sendo o segundo maior evento no Brasil, logo atrás do Carnaval. Tal feito é, de certa forma, “atribuído” às enchentes periódicas e às características culturais herdadas dos alemães. Monumentos históricos e construções de valor cultural são frequentemente restaurados. O primeiro Oktoberfest ocorreu em 1984, com intuito de construir uma história blumenauense que as águas das enchentes não são capazes de levar. O tema recorrente de todo ano é o estabelecimento da família e vida. Depois de voltar da filmagem do Oktoberfest e muita cerveja, Yanjun monologa: “Por que acho que somos um pouco parecidos com Blumenau (Hermann Bruno Otto Blumenau)?”

V. Adentrando no Pantanal

Reagrupados, de volta à estrada novamente. Indo em direção ao oeste, chegamos em Miranda. A cidade foi a última parada dos garimpeiros. Continuando o caminho, chegaria no Pantanal. Muitos já entraram por aqui; poucos voltaram. Aqui, encontramos por coincidência um pantaneiro. Seu nome era Nelson, um “boiadeiro” muito experiente. Yanjun Zhang fez uma série fotográfica dele, e o entrevistou. Nelson, depois, convidou Yanjun para acompanhar a sua boiada. Foram usados diários de campo, impressões subjetivas, gravadores, GPS, filmadoras analógica-digitais, máquinas fotográficas e mapa de fazendas do Pantanal disponibilizadas pela EMBRAPA, a fim de desvendar o estilo de vida dessas pessoas que ainda dependiam do ritmo da natureza para viver. Por essa experiência, Yanjun Zhang decidiu incluir Pantanal na Travessia. A comitiva brasileiro não conhecia o local, mas foi fácil conseguir informação com os habitantes locais. Eles não contaram ao Yanjun Zhang o que aprenderam dos moradores locais; ao invés, ocultavam e convenciam Yanjun de que aquilo tudo não era importante. O alojamento foi organizado pela comitiva através dos habitantes locais, contendo duas residências. Na porta de uma delas havia uma cobra venenosa. O guia local Alexandre disse: “Duas cobras, um macho e uma fêmea. Sinal de boa sorte aqui”. Yanjun Zhang fcou animado quando ouviu e disse: “continuamos”.

VI. Aventura na selva

Percebemos que somos o estrangeiro quando entramos em contato com uma natureza intocada pela primeira vez. Aqui, os animais são os donos. A floresta Amazônica é um labirinto de fauna e flora exótica, um mundo dos animais, não humanos. Fomos obrigados a reconhecer perigos pelo olfato e a fazer pazes com animais, tudo isso em um estado de alto estresse contínuo. A comitiva e os guias foram aos poucos saindo de um em um, equipamentos não-tripulados deixados para trás e veículos utilitários abandonados. O Jeep dirigido por Yanjun Zhang virou a nossa casa. GPS parou de funcionar, rádio de onda-curta [ref]O RT-654A/TRC-77 é uma estação de rádio militar especialmente desenvolvida para o “reconhecimento de longo alcance” do Exército. Foi desenvolvido pelo Laboratório de Defesa Eletrônica do Exército gerenciado pela Sylvania Corporation dos EUA. Possui um receptor de seis canais muito sensível e um transmissor independente de seis canais, com fonte de alimentação de 12VDC e sua faixa de frequência de 3-8 MHz. Consegue receber sinais de onda contínua e sinais modulados analógicos e enviar sinal de onda contínua.[/ref] deixou de receber mais sinal, combustível durava no máximo mais 10 dias. O que importa agora não são mais fotos, e sim a sobrevivência. Dirigindo em um ambiente cujo terreno era moldado por plantas flutuantes, a mudança era regra. Não tinha estradas para seguir, nem um norte para guiar. Quando sob ameaça iminente, Zhang apertava a câmera quase que por instinto. Para evitar emboscadas, o veículo não podia parar. Ao anoitecer, a neblina recorrente era iluminada pelos faróis, criando um clarão em frente ao veículo. Yanjun diz num tom de calmaria artificial: estamos dirigindo às cegas [ref]Situações extremas em que a condução não pode ser vista visualmente. Essa é uma piada que Yanjun Zhang conta para aliviar a pressão psicológica. Uma aeronave emprestada é pilotada inteiramente por instrumentos.[/ref]. O carro foi parado em um campo relativamente aberto e, depois de certificar que as câmeras e o central de registro estavam em funcionamento, Yanjun desceu do veículo para espalhar um círculo de enxofre ao redor, e foi em busca de água e comida com seu facão. Na volta, estava acompanhado de um indígena. Yanjun explica que sofreu um ataque, e foi esse indivíduo que o salvou. Fomos levados para uma tribo indígena. São muito amigáveis. Aprendemos muitas habilidades úteis, como fazer tochas a base de óleo animal, espantar animais por meio chacoalhamento das árvores, produção de repelente natural, sinalizar neutralidade com animais, entre outros. Encontramos uma planta específica que, através de métodos artesanais, era capaz de produzir combustível. Os nativos ajudaram-nos a montar uma antena, colocando o rádio em funcionamento. Recebemos sinais do mundo afora.

VII. Território próprio

De volta a São Paulo, semelhantes andavam por todo canto. Sentimos que era, finalmente, nosso território. Toda precaução que tínhamos com os chineses também foi desaparecendo. Antes, vivíamos em hotéis. Mas, agora que somos uma família de quatro integrantes, viver em hotéis tornou-se imprático. Mesmo sabendo dos perigos submersos, ainda sim alugamos uma casa de um chinês, seguindo as “regras” [ref]Existem três tipos de moradias brasileiras: “casa” é uma habitação autoconstruída, geralmente uma estrutura independente de dois andares. Podem ser desde luxuosas até simples; “Apto” é um prédio alto administrado por uma empresa imobiliária e oferece serviços de segurança; “Condomínio” é uma comunidade residencial com serviços de segurança pública. A lei brasileira estipula que o aluguel de casas deve ter um fiador local. O aluguel de uma casa na China não exige fiador, o preço é alto, um depósito é pago e um contrato formal de locação não é assinado. Tal conduta não é protegida por lei, então incidentes de roubo de “conluio interno e externo” ocorrem frequentemente.[/ref]. O locador é de Shandong, e o imóvel era uma casa de dois andares com garagem subterrânea. No andar de baixo, eram duas salas, e no de cima, três quartos e uma oficina. Atrás era um pequeno quintal, seguido por uma segunda estrutura de dois andares, tendo no primeiro andar uma cozinha, e no segundo a lavanderia. Ao anoitecer de um certo dia, ao voltarmos de uma filmagem, deparamos a casa de portas abertas. Correu para fora duas pessoas, sinalizando com pistolas para Yanjun descer do carro. O veículo foi levado junto com todo equipamento e passaportes deixados nele. Poucos dias depois, fizemos a mudança para um apartamento na Avenida Paulista. O dono do imóvel, dessa vez, foi um brasileiro. Possuía um espaço de jardim, seguranças e porteiros, câmeras de vigilância 24 horas e sem ponto cego. Descobrimos que no edifício, também, moravam chineses. Já em outro dia, ao chegarmos em casa, tudo estava impossivelmente bagunçado. Os discos rígidos dos computadores e de armazenamento sumiram, todas as maletas protegidas por senha foram abertas à força, e todos os documentos importantes desapareceram. Não foram levados uma nota de dinheiro sequer. Na mesma noite fizemos a mudança para uma flat. Não demorou muito para o carro, de novo, sumir. As câmeras de segurança mostraram que o ladrão era um funcionário do flat. Mas por mais inacreditável que fosse, não se tinha registros nem informações desse funcionário. Roubos e assaltos consecutivos, arquivos e registros conseguidos a riscos de vida foram, aos poucos, sendo perdidos. Quando visitamos o Padre Yanzhao He [ref]O padre Yanzhao He, natural de cidade Zhengding, Hebei, foi levado a Roma pelo bispo Chen Qiming quando era jovem, onde entrou na Universidade Católica. Em 1955, veio ao Brasil para participar da Assembléia Eucarística, sendo hóspede especial da Santa Sé. Em 2000, ele conheceu o Yanjun Zhang através da apresentação do Sr. Xie Ai, filho do general do Kuomintang Xie Jiaju, que vivia no Brasil e criaram uma amizade que ultrapassa a diferença de idade. Em 13 de março de 2016, o padre Yanzhao He faleceu aos 91 anos por causa de doença.[/ref], logo de cara Yanjun desesperadamente perguntou: o Deus brasileiro protege chineses como nós? Desnorteado, o Padre respondeu que sim. O caminho de volta foi mergulhado em um silêncio inquietante. A noite, Yanjun disse: Vamos voltar para China.

VIII. Tratados como indígenas

Fomos para Cananéia, Blumenau e Pantanal novamente para fotografar. Yanjun Zhang queria usar essas imagens de refilmagem para justificar a nossa experiência no Brasil. A nossa história atiçou os interesses da China. Em 2010, o Ministério da Cultura da China planejou um projeto para realizar uma exposição das nossas filmagens na China [ref]A Exposição e Seminário de Cultura Cinematográfica “O Charme da Cultura”, feito para acadêmicos sino-brasileiros foi instituído pelo Ministério da Cultura em 2009 e 2010, com o apoio da RevistaRECURSO e do Centro Nacional de Literatura e Arte Popular do Ministério da Cultura, Centro de Pesquisa Documental da China, Diretor de Publicação da Shaanxi Normal University e apoio da Embaixada do Brasil na China, do Escritório Cultural da Embaixada da China no Brasil no papel. A publicação foi realizada no Museu de Arte de Xi’an de 20 a 26 de agosto de 2011.[/ref]. O assistente de filmagem do Yanjun Zhang e piloto de helicóptero Flávio e sua esposa também foram convidados à China para participar dessa exposição. Mas o que a mídia mais se importava era aquilo que, na visão deles, caracterizava uma indistinguibilidade entre nós e os indígenas nativos do Brasil, chegando a questionar detalhes a respeito. Meu filho perguntou: “nós somos os indígenas que eles falam?” E eu respondi: “não”. Um dia, Yanjun Zhang falou: “Vamos voltar ao Brasil…”

Desfecho

Hoje, o filho e a filha já estão na faculdade. Comecei a experimentar diferentes culinárias. Yanjun Zhang faz trabalho voluntário em uma igreja católica todo feriado. Ele não foi batizado.

13 jul

Documentário “A Travessia” (Episódio 5) – Adentrando no Pantanal

Roteiro esboço para documentário “A Travessia” (Episódio 5)
(Versão PDF)

(Primeiro roteiro, Janeiro de 2012)

Script: Yanjun Zhang
Tradutor: Link Zhang e Viviana Zhang


INTRODUÇÃO

Essas são minhas memórias, imaginações, percepções e antecipações. O verdadeiro Brasil foi criado pelo seu povo e é mais rico que isso.

(YANJUN ZHANG)

O processo inteiro foi uma confusão completa, até retornar ao São Paulo que, após ler um pouco do material com ajuda da máquina de tradução, que comecei a entender um pouco do que passei e vivenciei. Mesmo que sejam apenas fragmentos.

(Legenda)

Neste, irei referenciar alguns pantaneiros cujos nomes são Nelson, Fernando, Vagner e João. São nomes fictícios, mas que representam muito bem quem eles são.

1

A cidade Miranda (MS) foi a última parada dos garimpeiros. Continuando o caminho, chegaria no Pantanal. Muitos já entraram por aqui. poucos voltaram. Aqui, Yanjun Zhang deparou-se por coincidência com um pantaneiro. Seu nome era Nelson. Ele convidou o Yanjun Zhang para acompanhar a migração da boiada.

2

Até o século XVII, o Pantanal era conhecido como Xarayes, nome de origem indígena. Mais tarde, vindo a ser chamado de pantanal, pelos portugueses. Sua área total é de 220 mil quilômetros quadrados. A uma considerável superfície banhada pelo complexo hidrográfico formado por centenas de rios que nascem nos planaltos adjacentes, deságuam no rio Paraguai e lhe dão uma fisionomia especial. A região tem duas estações bem definidas: seca e cheia. No período da cheia – entre novembro e março – os rios transbordam e cerca de 150 mil quilômetros de extensão mitificam submersos. Há áreas mais afastadas, nas quais a enchente atinge apenas as depressões, formando lagoas e baias. Elas são bom local para colocar o gado que, nessa época, chega a pastar o capim que fica coberto pela água. Durante as cheias as fazendas ficam ilhadas e as canoas passam a substituir cavalos. Rios e corixos – desvios temporários dos rios e córregos – se tornam estradas e a vegetação cresce a ponto de fechar as passagens.

3

Pantanal é um sistema ecológico que não se completa apenas com o conjunto de uma avifauna e de uma flora variadíssimas. Muito mais importante é o homem que nele vive tanto na condição de dono da terra, quanto na de vaqueiro, empreiteiro, bagualeiro, garimpeiro, balseiro, pescador, etc.

Nos séculos XVII e XVIII desbravadores paulistas já percorriam a região, na captura de índios e em busca de ouro, será apenas nos anos de 1800 que a pecuária irá se estender de forma sistemática e contínua pelos campos.

O pantaneiro é produto da miscigenação entre as diversas sociedades indígenas que habitavam a região, os colonizadores e os escravizados negros africanos. Entre os indígenas estavam os Guató, Guaicuru, Terena, Payaguás, Kayapós e Bororo, sendo que, atualmente, muitos deles são apenas remanescentes de uma história que não se deixou contar.

4

Nelson é uma figura completa de pantaneiro. Já reunia então grande experiência pantaneira e mostrava forte espírito de liderança, serenidade e coragem.

Ele começou a beber pinga aos seis anos, onde, no início era apenas para experimentar e só molhava a língua, foi pegando o gosto até adotar o hábito de beber. Nelson elucida-nos que a bebida é comum nas comitivas e deixa claro que os condutores não permitem que seja levada na bagagem, muito menos consumida durante o trabalho.

(NELSON, Pantaneiro)

[…] a maioria das pessoas conheceram o pai, conheceram a mãe, conheceram avós. Alguns conheceram bisavós. Mas a grande maioria não sabem de onde vieram.

Quantas e quantas pessoas que adentraram a este Pantanal e que foram vítimas de doenças? Quantas mulheres perderam os seus maridos precocemente por doenças que, hoje, já são curadas e que já são evitadas?

Quantas pessoas usavam a luz do fogo? As lamparinas que eram construídas e que eram acesas usando gordura animal.

Uma viagem de Campo Grande até aqui, que são de 220 quilômetros, no passado levava-se 60 dias […] e essa demora na viagem se fazia inclusive em função das intempéries, dos caprichos da natureza. Porque se chegava no rio e o rio estava cheio, tinha que aguardar abaixar essas águas para poder passar.

5

O Brasil viveu o ciclo da cana-de-açúcar, do ouro, do café, mas o que está por trás desses ciclos, sempre presente, é a criação de gado, atividade de sustentação das outras através da carne, do couro, dos ossos, dos chifres. Durante séculos o vasto interior tem vivido na de “cultura do couro”.

O Brasil tem o maior rebanho bovino comercial do planeta. A criação de gado é uma atividade que envolve a vida dos brasileiros desde os tempos de colônia, fez parte do processo civilizador do interior do país, e continua acompanhando as pessoas nos dias atuais.

A boiada que está no imaginário popular é um mistério cercado de lendas e histórias, assim como sua presença na literatura e na música que fazem parte dos arquétipos da cultura brasileira.

6

No Pantanal, devido às extensas áreas de alagamento na planície, a Comitiva significa muitas vezes, a única forma possível de se conduzir o gado. A comitiva vai onde o caminhão boiadeiro não vai, a comitiva conduz um número de animais que as vezes seria necessário dezenas caminhões para fazer o translado.

(FERNANDO, Médico-veterinário, proprietário de fazendas nos pantanais)

Dependendo da época, das enchentes periódicas e do momento econômico chego a trabalhar com até oito comitivas ao mesmo tempo. Apesar do surgimento dos caminhões de transporte de gado, as gaiolas boiadeiras, as comitivas são insubstituíveis por motivos funcionais e econômicos.

Os comitiveiros conhecem profundamente a realidade do Pantanal. Além disso, o transporte a longas distâncias em caminhões pode inviabilizar economicamente a atividade pecuária. Por exemplo, um trabalho realizado pelas comitivas em um trajeto de 600 km, que custa R$6.600,00, pode chegar até as R$ 35 mil nos caminhões.

(VAGNER, Profissional de comitivas)

É muito mais saudável o transporte pelas comitivas, pois o gado vai pastando, bebendo água, não sofre. Em quase todo o Pantanal há mangueiros especiais para o pernoite. E mesmo nas estradas os problemas são poucos, os motoristas entendem nosso trabalho e respeitam, colaboram e raramente temos perda de animais. As longas distâncias e as águas do Pantanal são os nossos maiores aliados. Por isso eu conto pro senhor que enquanto existir Pantanal existirão comitivas.

7

O boiadeiros sendo uma figura típica na região do Pantanal, possuem um diversificado sistema de símbolos significantes (linguagem, arte, mito, ritual) na expressão de uma forma única de contato com a natureza. O boiadeiro é aquele que realiza viagens conduzindo gados, normalmente comprados em leilões ou em fazendas e sendo entregues na fazenda do comprador. no convívio diário com o ambiente, aprendeu a fazer a leitura da natureza, a fim de capturar suas mais sutis transformações.

(YANJUN ZHANG)

Eles são muito sensíveis aos perigos do seu redor, percebendo-os através do cheiro e som. Perigos como a presença de cobras ou onças.

Eles utilizam de mapas mentais transmitidos oralmente, deixando registros ao longo do caminha. Também utilizam lâminas para marcar referências, que podem também ser compostas por lixos deixados para trás, como caixas de cigarro ou roupa velha. Às vezes também podem ser compostas de desenhos esquemáticos ou pornografias. Todos estes elementos compõem um sistema de referências contido na paisagem, elementos que revelam o significado de lugar.

A vida do boiadeiro consiste inteiramente na condução da boaida. Eles acordam ao nascer do sol, despacham o acampamento, e retornam à condução, parando no meio para almoçar, continuando depois a marcha. Ao anoitecer, eles chamam a boiada, acendem fogueiras, e provocam uns aos outros, às vezes gerando brigas.

A vestimenta do boiadeiro consiste em calças de couro, camisa, cinto e chapéu de couro. Eles carregam consigo armas e munições, além de uma lâmina extraordinária de afiada. Por motivos de precaução com o inesperado, e também por amor. Boiadeiros passam as suas vidas inteiras sem se casar, contando somente com mulheres que encontram ao decorrer do caminho.

O boiadeiro tem o seu estilo de vida único, apreciando a natureza com suas vidas.

8

Essa seja uma atividade estritamente desenvolvida pelos homens, e considerada uma tarefa perigosa e arriscada. Se faltar alguma rês o Condutor terá que pagá-la.

(VAGNER, Profissional de comitivas)

Os burros são utilizados, em geral, para viagens longas, pois apesar de não serem velozes, são bastante resistentes. Já o cavalo é mais rápido, mas precisa de maior descanso e enfrenta dificuldades nas áreas que se alternam secas e enchentes.

9

Cada peão tem sua posição e sua função. Dentro das Comitivas acompanhadas, o ofício mais perigoso é o do Ponteiro, pois se o gado estourá (correr assustado) pode passar por cima dele. Apesar desta colocação, o perigo está presente entre todas as funções. Assim, o Condutor irá escolher, dentre os boiadeiros da Comitiva, quem será o arribador, no geral, deverá ser o Culateiro ou Meeiro.

(VAGNER, Profissional de comitivas)

Na retaguarda do gado, o condutor, capataz ou culatreiro, quase sempre o proprietário da comitiva ou então contratado pelo fazendeiro dono do gado. O condutor é o mais experiente dos peões e cabe a ele contratar o pessoal e formar a comitiva.

Dos lados esquerdo e direito, logo a frente do condutor, seguem os meeiros, responsáveis pelo bom andamento da primeira metade tropa. À frente da boiada posiciona-se ponteiro, a grande estrela da comitiva. Sempre com o berrante nas mãos – instrumento de sopro feito de chifre de boi – alerta os demais companheiros com uma grande variedade de toques para perigos sempre constantes que rondam o gado.

O ponteiro é um exímio cavaleiro e conhecedor dos sinais do meio ambiente pantaneiro. Ele avisa, por exemplo, da presença de onças, dos enxames de abelha que podem provocar o chamado estouro da boiada. É ladeado pelos fiadores, seus auxiliares diretos e que cuidam da metade da frente da comitiva.

Completam a equipe o solitário cozinheiro, sempre alguns quilômetros distante da boiada. O cozinheiro deixa a comitiva de madrugada, carrega os animais com as bruacas – tipo de baú feito de madeira e coberta com couro de boi – cheias de alimentos e espera os companheiros cerca de 10 km adiante, para o almoço. Repete o ritual no período da tarde e prepara o jantar.

Quando é muito gado, mais de mil cabeças, e o trajeto quase todo às margens das estradas asfaltadas, algumas comitivas incluem dois bandeirinhas, aqueles cavaleiros que, portando pequenas bandeiras vermelhas, alertam os motoristas.

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Ao receber o gado, os peões contam quantas cabeças transportarão e analisam o comportamento dos animais e vêem quais bois darão mais trabalho, para montarem sua estratégia. De madrugada eles encilham os animais de montaria, verificavam todos os apetrechos, laços, peias, manoplas, alforjes, guampas e redes.

Sal, açúcar, carne-seca, arroz, farinha e mate, em pequena quantidade geralmente são levados, no lombo de cavalos. Ervas medicinais também são transportadas para serem utilizados em caso de alguém ser picado por algum animal venenoso, adoecer, ou se machucar. Antes de sair para o campo os boiadeiros tomam apenas café, chimarrão e às vezes guaraná em pó.

As Comitivas Pantaneiras continuam ocupando seu espaço com a formação clássica de sete peões.

11

João, um misto de fazendeiro e empresário de Corumbá. Era dele a empresa de táxi-aéreo que tinha preços razoáveis e com atendimento sempre em prontidão.

(YANJUN ZHANG)

Para que eu pudesse acompanhar a boiada, ele cedeu três cavalos para a equipe e uma carreta com quatro juntas de bois para levar a bagagem e equipamentos.

No dia da partida da boiada, chegou pilotando seu próprio avião, um potente Cessna 270. Escolheu os 800 bois em poucos horas, comandou a vacinação contra aftosa e a marcação com ferro em brasa. Depois passou-os à responsabilidade do capataz da comitiva. Antes de ir embora, fez um sobrevôo que permitiu a minha câmera de capturar as imagens da boiada saindo da mangueira e começando a viagem.

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(YANJUN ZHANG)

Para produzi-la eu tive que se submeter às condições locais. Em Corumbá compramos o que precisava: redes, mosquiteiros, lanternas, botinas, facas, pratos, talheres, canecas, alguns remédios básicos e comida (macarrão, arroz, feijão, óleo, carne-seca, sal, cebola, queijo, biscoitos e latas de goiabada). Não havia equipe de pré-produção que vai na frente providenciando as locações para filmagem, refeição e hospedagem. Fui no ritmo da boiada, dormindo e comendo como os boiadeiros, com a cara e a coragem.

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A primeira parada da viagem ocorreu em áreas inundadas. Como ali não andavam veículos modernos, não havia estradas. E só fui poder contar com a generosidade dos pantaneiros e com a tecnologia local — por isso, viajava a cavalo e apoiados por um carro-de-boi transportando nosso equipamento e bagagem.

(YAJUN ZHANG)

Não tinha experiência de montar a cavalo. Mas não havia outra solução. E sai atrás da boiada. Precisava alcançar a cabeceira. Os cavalos andavam mais depressa que os bois, mas não era muito, ainda mais porque era difícil conduzi-los e ao mesmo tempo cuidar do equipamento.

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(NELSON, Pantaneiro)

Durante o encilhamento da tropa é necessário que o peso sobre cada lado do lombo do burro seja distribuído equilibradamente, para não pisar e machucá-los, podendo cada burro carregar por volta de 45 quilos em cada lado.

Cada burro tem a sua carga certa de carregar, Os mesmo baixeiro, o mesmo tilim, por a mesma carga. Por exemplo, se ele chegou hoje, ele um pacote de macarrão, um quilo de arroz na janta, ele já tem que saber da onde ele, que caixa ele tirou, pra ele igualar o peso, porque a caixa tem que ta sempre o mesmo peso, 10 kg prum lado, 10 kg pro outro. Pra ele ir no balanço, pra não pisar o animal. Se pisar, tem que viajar. Então é uma coisa muito melindrosa, tem que ter muito cuidado, muita atenção.

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O trabalho nas Comitivas começa com o nascer do sol. A primeira parada é entre onze horas e meio dia; o ponteiro dá um sinal à tropa de que ela está se aproximando do local combinado com o cozinheiro. Neste horário, o gado já está mais vagaroso. Os peões tocam os bois para o lado daqueles que já estão parando, há alguns, inclusive, que até se deitam no chão.

Os peões desencilham os animais antes do almoço. Na hora da refeição eles devem tirar o chapéu. O primeiro a se servir é o condutor. Já alimentados, os viajantes tiram a sesta enquanto o cozinheiro junta os objetos da cozinha e segue viagem até o local da segunda parada, onde a tropa irá passar a noite em mangueiros de fazendas ou mesmo em campo aberto.

Não deve predominar o silêncio durante o andar da comitiva, pois ele causa sono aos animais, mas muita movimentação também deve ser evitada. Os boiadeiros se comunicam com o gado através de gritos, estalos do arreador e do som do berrante, para que ele não se disperse. Normalmente a comitiva percorre 20 quilômetros por dia.

16

(YANJUN ZHANG)

A boiada ia andando. Era um alvo móvel. Tinha de me reposicionar a cada instante. E o movimento havia ficado mais complicado com os dois cavalos amarrados um no outro. Para piorar, caminhei por terreno alagado, água rasa mas que cobria as patas dos animais. O sol era forte, e a evaporação da água tornava o ar abafado, fazia muito calor.

A filmagem era muito difícil, quase que impossível entrar no meio da boiada. Muitas vezes perdia lances importantes por causa da dificuldade de atravessar no meio dela, ou então as coisas poderiam estar acontecendo lá na cabeceira e para chegar em tempo era dureza.

Nos dias seguintes fui me adaptando um pouco, mas a dureza continuou. Quando a boiada atravessava um coricho (riacho) ou lagoa, era preciso toda uma operação para eu adiantar e tomar posição em condições de gravar. Graváva a partir do carro-de-boi, de rodas bem altas, que permitia um ponto de vista superior.

O sofrimento foi grande. Mas a riqueza de imagens era tanta que não queria perder nada. Nesses dias foram capturadas algumas das imagens mais significativas desse filme.

17

No caminho, as salinas, lagoas de água salgada que a boiada pressentia de longe e para as quais se encaminhava ansiosa para beber.

18

À medida que a boiada avançava, ia entrando em terreno mais alagado. A água já ia pelas canelas dos animais.

19

E assim entardeceu. Precisávamos nos preparar para o pouso. Os peões pararam a boiada num piquete de uma fazenda.

(YANJUN ZHANG)

Nossas botinas e calças estavam ensopadas. E o corpo todo doía. Eu sentia as pernas amortecidas e as costas duras pelas longas horas montado.

20

Grandes fazendas, largas planícies alagadas. De vez em quando, capões de mata com árvores altas e muitas aves — araras-vermelhas, curicacas, tuiuiús. Apesar de o ruído produzido pelos bois e peões espantar os bichos, ainda assim ia topando com capivaras, manadas de porco selvagem, quati, ema. Árvores frutíferas crescem livres pelo campo, e cheguei a colher alguma goiaba, limão e manga.

21

(YANJUN ZHANG)

Para dormir, nos acomodamos numa casa de taipa abandonada, cujo piso era de chão batido e estava alagado. Armamos as redes sobre a água e dormimos ali.

(YANJUN ZHANG)

Eu ainda não estava acostumado a dormir em rede. Havia muito pernilongo, era preciso dormir com mosquiteiro. Mas aí o calor, que já era forte, ficava sufocante. Os pernilongos zuniam em volta.

22

Alguns dias depois, deixamos os cavalos e atravessamos assim o restante dessa região cada vez mais alagada, “navegando” sob o calor mais forte e abafado que íamos enfrentar durante toda a viagem. Quando os bois passavam, uma onda de calor subia da água. Fomos assim até às margens do rio Taquari, onde a boiada fez aquela travessia famosa. A passagem do gado demorou toda uma tarde e foi emocionante.

(YANJUN ZHANG)

Primeiro vieram os bois “sinuelos”, aqueles bois mais velhos, treinados e que eram alugados para fazer a travessia guiando a boiada. Ela foi dividida em quatro lotes de cerca de duzentos animais cada. Os peões punham os sinuelos na frente, eles entravam na água e começavam a nadar. Os peões pressionavam os bois a seguir os sinuelos. Assim o primeiro lote caiu na água. Não dava pé para os bois, o rio era profundo e eles começaram logo a nadar, atravessando o rio. Monitorados a montante e a jusante por peões práticos em canoas a remo, enfrentaram o canal que tinha mais de duzentos metros de largura. E chegaram na outra margem exaustos. E assim foi. Sucessivamente os quatro lotes de bois cruzaram o Taquari.

Eu acompanhamos tudo a bordo de um bote a motor, O piloto do bote, com muita prática, deslizava até bem perto dos animais para as tomadas bem próximas. Comandamos o bote bem em frente a uma parte da manada. E como esses bois já não avistavam os sinuelos, recuaram, desviaram fazendo alvoroço na água, indo para a margem de uma ilhota que havia no meio do rio. Os peões tiveram de ir buscá-los lá.

E quanto ao bote, era do João. Ele mandou gente vir de sua fazenda pelo rio para nos atender. Afora o aluguel do avião, nós não pagamos nada a ele. Disse que fazia aquilo por prazer.

(NELSON, Pantaneiro)

O grande temor dos peões é que aconteça algum imprevisto, pode ser até um raio, um trovão, e isso provoque um estouro da boiada. Eu não torcia para que isso acontecesse, mas às vezes a viagem ia monótona e tentávamos alguma novidade.

23

Sempre que chegavam a uma zona (prostíbulo), Nelson pagava para uma prostituta fazer companhia a ele.

(NELSON, Pantaneiro)

Passava a noite conversando, pagava bebida e pelo programa mesmo sem ter acontecido nada. Eu às tratava com tanto respeito que quando a comitiva cruzava pelo mesmo caminho tinha disputa entre as meninas para quem ia fazer companhia pra mim.

24

Na terra seca e vermelha, a boiada levantava uma grande nuvem de poeira. Uma dessas cenas resultou numa tomada majestosa, os bois descendo uma ladeira, envolvidos por uma enorme nuvem de poeira vermelha.

25

(YANJUN ZHANG)

No final, os bois passaram por um corredor onde foram contados pela última vez. Faltavam onze, oito que se machucaram e foram trazidos de caminhão, e dois que morreram pelo caminho. Em seguida, os bois foram conduzidos rumo a uma porteira que dava para um pasto bem verde. Foram entrando e logo aproveitando para comer o capim fresco. Em poucos minutos espalharam-se pelo pasto, desmanchando assim a “nossa” boiada.

26

Fiquei amigo dos peões e preparamos uma festa de despedida.

(YANJUN ZHANG)

Trouxe comida e bebida de Aquidauana (MS). E Nelson havia caçado um porco monteiro (porco caseiro que foge para o mato e se torna selvagem), que, ao anoitecer, foi servido assado na brasa. Uma iguaria. Mas eu cometi o erro de trazer umas três garrafas de cachaça também. Fui oferecer a um dos peões. Ele bebeu de golada dois copos cheios. E já foi ficando tonto. Outros começaram a beber rapidamente e a ficar alterados. Nelson não bebeu nada, manteve-se atento.

Foi aí que percebi. Durante toda a viagem os peões não haviam bebido uma gota de álcool. Mas alguns deles deviam ser alcoólatras. Quando paravam em Corumbá estavam a maior parte do tempo bêbados. Se aparecia algum serviço, Nelson os arrebanhava nos bares e pensões, pagava suas dívidas e os trazia para uma temporada de abstinência.

CRÉDITOS FINAIS

Essa foi uma experiência extraordinária. Fez-me firmemente acreditar que é possível atravessar o Pantanal, para finalmente chegar à Amazônia.

Aos boiadeiros do Pantanal, que tanto me inspiraram no trajeto desta filmagem, por sua beleza, sabedoria e coragem.

17 jan

Comitiva de boiadeiros no Pantanal

COMITIVA DE BOIADEIROS NO PANTANAL – MATO GROSSENSE DO SUL:
MODO DE VIDA E LEITURA DA PAISAGEM

Aos boiadeiros do Pantanal, que tanto me inspiraram no trajeto desta pesquisa, por sua beleza, sabedoria e coragem.

Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive.

Fig. 1 – Sr. Zé Preto atravessando a boiada no rio Cerradinho. Abobral. Acompanhamento segunda Comitiva.

RESUMO

Esta dissertação aborda o modo de vida e a leitura da paisagem dos boiadeiros no Complexo Pantanal Sul-Mato-Grossense. Os boiadeiros representam parte dos trabalhadores da pecuária, uma importante atividade econômica nesta região. Montados em burros, atravessam diversas paisagens viajando até meses, conduzindo grande quantidade de gado pertencente a pecuaristas. Devido à escassez de material disponível na literatura foram coletados relatos, principalmente, de entrevistas com interlocutores locais, suas histórias de vida e através do acompanhamento presencial de Comitivas de boiadeiros. Para compreensão do tema adotou- se a concepção de paisagem como lugar no contexto de populações tradicionais, considerando o significado dado pelas experiências vividas e representações simbólicas. A descrição contextualizada de Geertz (1989) trouxe contribuições metodológicas para fundamentar o trabalho de campo e auxiliar na interpretação dos dados. Deste modo, buscou-se esboçar o universo cultural do boiadeiro, descrevendo a estrutura e o cotidiano desta atividade, que segue o ritmo das águas do Pantanal, estabelecendo as fases de enchentes, cheias, vazantes e estiagens. Além disto, por meio de relatos de boiadeiros foram elaborados mapas de alguns dos roteiros destas viagens, identificando-se os marcos referenciais da paisagem cultural e um matiz de linguagens como estratégias de orientação. A interpretação de dados proporcionou uma discussão sobre as contradições e adaptações no modo de vida dos boiadeiros frente às mudanças econômicas e sociais, reconhecendo sua persistência, singularidade e complexidade como um conhecimento extreitamente integrado às paisagens pantaneiras. As reflexões nesta pesquisa pretendem apontar uma diferente perspectiva, de acordo com a importância do valor cultural dos boiadeiros pantaneiros.

LISTA DE FIGURAS [1]

Fig. 1 – Sr. Zé Preto atravessando a boiada no rio Cerradinho. Abobral. Acompanhamento segunda Comitiva.
Fig. 2 – Vó Olívia, eu e minha irmã Denise (à direita)
Fig. 3 – Fazenda Sanharão (avôs maternos)
Fig. 4 – Vô Basílio, minha irmã Denise e prima Telma (à direita)
Fig. 5 – Refúgio Ecológico Caiman. Miranda-MS. (Fonte: Refúgio Ecológico Caiman)
Fig. 6 – Trabalhando como guia (de costas, explicando sobre a palmeira Acuri): Trilha Cordilheira do X.
Fig. 7 – Trabalhando como guia (em pé, próxima a baía), informando sobre o passeio de canoa.
Fig. 8 – Saída da Comitiva na Fazenda Caiman. Primeiro acompanhamento presencial de uma Comitiva de boiadeiros (ao meu lado direito está o Condutor Sr. Ramon Miranda, logo atrás está o seu pai, Sr. Alfredo, e ao fundo estão os Meeiros, Fiadores e um acompanhador do Retiro Santa Vóia, Fazenda Caiman).
Fig. 9 – Ciclo das águas e boiadeiros no Pantanal-MS. (À esquerda seguindo o sentido da seta: 1. Enchente: Ponte sobre o Rio Miranda. Segunda Comitiva. 2.Cheia: Travessia Rio Cerradinho. Segunda Comitiva. 3. Vazante: Ponteiro Morcego. Primeira Comitiva. 4. Seca: Saída de Comitiva da Fazenda Fátima). Montagem das fotos: Juliana Moreno.
Fig. 10 – Observação participante (primeira comitiva). À minha esquerda, os boiadeiros Vô Alfredo, Ramon, Morcego e Zumba
Fig. 11 – À minha esquerda, Zumba e à direita Morcego, com berrante. Primeira Comitiva
Fig. 12 – Sapo, minha montaria. Terceira Comitiva.
Fig. 13 – Sr. Alfredo Miranda, pai de Ramon
Fig. 14 – Cozinheiro anônimo seguindo viagem. Faz. Nossa Sra do Carmo
Fig. 15 – Sr. Zé Preto trabalhando na estação da cheia. Fonte: Pousada Xaraés
Fig. 16 – Juarez Rodrigues da Silva.
Fig. 17 – Sebastião Rolon
Fig. 18 – Luis Martins (Biguá)
Fig. 19 – José Aparecido F. da Silva (Barriga). Fonte: Pousada Xaraés.
Fig. 20 – Quadro Colaboradores.
Fig. 21 – Comitiva da Fazenda Redenção no ponto de pouso da Fazenda Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 22 – Rádio em ponto de parada, na Comitiva da Fazenda Redenção
Fig. 23 – Juarez. Fonte: Mari Baldissera
Fig. 24 – Seu Zé Preto tomando tereré
Fig. 25 – Bomba
Fig. 26 – Guampa e bomba amarradas a traia.
Fig. 27 – Sr. Jair (Beto Carreiro), Wilson e Barba tomando tereré durante a marcha
Fig. 28 – Isopor (apelido). Detalhe do chapéu enfeitado com lacres de latas de alumínio
Fig. 29 – Sr. Zé Preto trabalhando com o couro de vaca para uso na própria tralha. Fonte: Pousada Xaraés
Fig. 30 – Ramon. Detalhe para acessórios. Fonte: Thiago Rocha
Fig. 31 – Boiadeiro anônimo. Ponto de pouso, fazenda Nossa Senhora do Carmo
Fig. 32 – Ponteiro Luís com o arreiador, “surrando” o animal. (terceira Comitiva)
Fig. 33 – Uso do reio por Ramon Miranda. Fonte: Thiago Rocha
Fig. 34 – Saída da terceira Comitiva. Cozinheiro e tropa cargueira passando à frente da boiada.
Fig. 35 – Sr. Geraldo dirigindo trator até o local de saída da primeira Comitiva acompanhada. Zumba (boiadiero) à direita
Fig. 36 – Simulação das funções dos boiadeiros em Comitiva
Fig. 37 – Ponteiro Luís tocando o berrante.
Fig. 38 – Ponteiro Morcego na Comitiva Fazenda Caiman ( 2005). Fonte: Thiago Rocha
Fig. 39 – Contagem de bois pelo Condutor. Terceira Comitiva
Fig. 40 – Acompanhador de fazenda e Cozinheiro Dourado
Fig. 41 – Cozinheiro Dourado encilhando burro cargueiro (bruacas em baixo, dobros dispostos sobre a mesma e lona para cobri-los).
Fig. 42 – Burro cargueiro encilhado. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha
Fig. 43 – Mula cargueira encilhada. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha
Fig. 44 – Ponto de pouso Fazenda Buriti. Terceira Comitiva.
Fig. 45 – Ponto de pouso. Redes armadas. Fonte: Csaba Gődény
Fig. 46 – Tropa “formada” (em fila organizada)
Fig. 47 – Marcas dos boiadeiros em ponto de parada (cinzas e postes para redes)
Fig. 48 – Cozinheiro e sua cozinha. Fonte: Csaba Gődény
Fig. 49 – Organização da cozinha. Pesquisadora e Ramon Miranda.
Fig. 50 – Cozinheiro Gilberto preparando arroz carreteiro. Comitiva Caima. Fonte: Thiago Rocha (2005)
Fig. 51 – Cozinheiro Gilberto preparando almoço. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha (2005)
Fig. 52 – Organização da cozinha. Panelas de comida sobre trempe e o fogo. Outros utensílios sobre pequena mesa de madeira.
Fig. 53 – Bule de café e coador. Panela com água fervida, colher de concha e canecas de café.
Fig. 54 – Latas d‟ água penduradas em figueira (Fícus sp), colheres de concha, caneca maior para pegar água, menores para bebê-la
Fig. 55 – Poeira no estradão: terceira Comitiva.
Fig. 56 – Estouro de boiada na travessia do Rio Abobral. Comitiva da Nossa Senhora de Fátima.
Fig. 57 – Amanhecer no ponto de pouso da fazenda Nossa Senhora do Carmo. Comitiva desconhecida
Fig. 58 – Canto de cerca. Fazenda São Bento.
Fig. 59 – Porteira de varas. Fazenda Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 60 – Simbra. Fazenda Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 61 – Portão. Fazenda Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 62 – Mata- burro. Faz. Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 63 – Cocho. Faz. Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 64 – Ponte sobre o Rio Abobral. Segunda Comitiva. Pousada Xaraés.
Fig. 65 – Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha.
Fig. 66 – Poço na invernada Antena. Faz. Nossa Senhora do Carmo. Terceira Comitiva.
Fig. 67 – Corredor Faz. São Bento. Região Abobral
Fig. 68 – Aterro. Faz. Nossa Senhora do Carmo
Fig. 69 – Boiadeira Central. Faz. São Carlos (seta branca indica estrada)
Fig. 70 – Estrada d‟água. Faz. Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 71 – Batida de Boiada. Região Abobral
Fig. 72 – Estrada de cascalho. Região Nabileque.
Fig. 73 – Magro (apelido) na Comitiva da Fazenda Caiman. Fonte: Thiago Rocha.
Fig. 74 – Asfalto. BR164. Região Nabileque
Fig. 75 – Marca de boiadeiro em árvore.
Fig. 76 – Escrito de boiadeiro em ponto de pouso.
Fig. 77 – Escrito boiadeiro em pouso
Fig. 78 – Restos de cinza em ponto de pouso
Fig. 79 – Lixo em pontos de pouso (montagem)
Fig. 80 – Rabo de burro (A. bicornis). Região Abobral.
Fig. 81 – Pasto formado com humidícula. Região do abobral.
Fig. 82 – Carandazal (Copernicia Alba)
Fig. 83 – Estrada com mato fechado. Primeira Comitiva. Região Aquidauana/
Fig. 84 – Campina. Faz. Nossa Senhora do Carmo
Fig. 86 – Cordilheira. Faz. Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 87 – Capão. Refúgio Ecológico Caiman
Fig. 88 – Raque e pecíolo de Acuri como espeto de churrasco
Fig. 85 – Campina
Fig. 89 – Fedegoso (Cassia occidentalis L.):
Fig. 90 – Erva de Santa Luzia (Euphorbia hirta L.):
Fig. 91 – Cânfora (Bacopa monnierioides):
Fig. 92 – Caramujo Aruá
Fig. 93 – Tachã
Fig. 94 – Saracura Três-
Fig. 95 – Bugio.
Fig. 96 – Tropa de burros (Equus asinus)
Fig. 97 – Cupins
Fig. 98 – Areião. Retiro Santo Onofre. Faz. Santa Filomena
Fig. 99 – Morro do Azeite. Fonte: Eric de Vito (2009).
Fig. 100 – Campo aberto. Estrada Parque
Fig. 101 – Bola pé. Travessia boiada no rio Cerradinho. Segunda Comitiva. Fazenda Fátima.
Fig. 102 – Vazante Cerradinho. Faz. Nossa Senhora do Carmo
Fig. 103 – Rio Paraguai. Porto da Manga. Embarcadouro de gado.
Fig. 104 – Corixo do inferno. Faz. Nossa Senhora do Carmo.
Fig. 105 – Marcos Antonio Vaca (Babuíno). Segunda Comitva. Carandazal
Fig. 106 – Orelhas do Sapo. Fazenda Santa Filomena. Segunda Comitiva.

MAPAS

Mapa 1 – Sub- Regiões ou “pantanais” do Pantanal: Bacia do Alto Paraguai no Brasil. Fonte: Silva; Abdon (1998).
Mapa 2– Mapa ilustrativo: Fazendas Pantanal- MS e roteiros das três Comitivas acompanhadas. Fonte: EMBRAPA (modificado).
Mapa 3 – Mapa falado por Biguá (2009) do roteiro de Comitiva de Aquidauana a Fazenda Central.

TABELAS

Tabela 1 – Acompanhamento de Comitivas
Tabela 2 – Entrevistas
Tabela 3 – Simulação de custos para o comprador de gado na contratação do serviço de uma Comitiva com duração de 11 marchas
Tabela 4 – Simulação de custos do Condutor pela prestação do serviço de uma Comitiva de 11 marchas.
Tabela 5 – Marcos referenciais da paisagem: paisagens da fazenda
Tabela 6 – Marcos referenciais na leitura da paisagem: marcas e escritos de boiadeiros
Tabela 7 – Marcos referenciais na leitura da paisagem: vegetação
Tabela 8 – Exemplos de plantas medicinais e formas de utilização citadas pelos boiadeiros.
Tabela 9 – Marcos Referenciais na leitura da paisagem: exemplos de animais
Tabela 10 – Marcos referenciais na leitura da paisagem: solos e relevo
Tabela 11 – Marcos referenciais na leitura da paisagem: paisagens aquáticas
Tabela 12 – Diferenças entre o ciclo das águas (cheia e seca) e seus significados para boiadeiros

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
Mundo – vida: Um conto que eu conto
Uma pesquisadora no ambiente de trabalho masculino
Estrutura dos capítulos
CAPÍTULO 1 – O CAMINHO TRAÇADO NA PESQUISA
1.1 Contextualização do tema de estudo
1.1.1 O Pantanal
1.1.2 O homem pantaneiro e a pecuária
1.2 Marco conceitual: A interpretação da paisagem como lugar no contexto de populações tradicionais
1.2.1 Populações tradicionais
1.3 Trajetória Metodológica
1.3.1 Os Colaboradores
1.3.2 Construção dos Resultados
CAPÍTULO 2. COMITIVA DE BOIADEIROS: MODO DE VIDA
2.1 Viajantes do estradão
2.2 Na batida das Comitivas de boiadeiros
2.3 Puxando a boiada
CAPÍTULO 3 – COMITIVA PANTANEIRA: LEITURAS DAS PAISAGENS
3.1 Na batida do Estradão – marcos referenciais na paisagem
3.2 No ritmo das águas
CAPÍTULO 4: APROXIMAÇÕES PARA UMA CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
APÊNDICE
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

INTRODUÇÃO

Mundo – vida: Um conto que eu conto

Faz-se necessário, como parte da trajetória metodológica [2] escolhida para esta pesquisa, discorrer sobre as razões pessoais que motivaram este trabalho. Expor um pouco da minha história de vida através de memórias, imaginação, percepções e antecipações.

Talvez a inspiração para esta pesquisa tenha se iniciado quando pequena no convívio com minha família materna, em uma fazenda na região do Vale do Ribeira, Mata Atlântica, no município de Barra do Turvo, São Paulo (Fig.2, 3 e 4). Meus avôs eram produtores rurais, meu avô, mesmo analfabeto, negociava e viajava transportando gado e conduzindo porcos a pé. Coisas vividas que contadas nos caminhos da pesquisa renderam boas risadas com alguns boiadeiros, pois no Pantanal são acostumados apenas a conduzir gado a cavalo. Tocar porco a pé soa muito esquisito! Foram anos marcantes de minha vida, dos quais guardo lembranças e ouço histórias contadas e re-contadas na família que aguçam minha curiosidade até os dias de hoje sobre o modo de viver, sentir e trabalhar na pecuária e agricultura.

Fig. 2 – Vó Olívia, eu e minha irmã Denise (à direita).
Fig. 3 – Fazenda Sanharão (avôs maternos).
Fig. 4- Vô Basílio, minha irmã Denise e prima Telma (à direita).

Dessas vivências, credito o surgimento do interesse pelo modo de vida rural e o interesse pela pesquisa da vida da gente do campo. Um pouco difícil, porém, tem sido relacionar emoção e razão ou coração e cientificidade. Desenvolver o mestrado para mim foi algo quase que visceral e apesar de haver tantas regras formais nessa trajetória, ainda acredito que não é necessário se perder a paixão. De qualquer forma, compreendo que há muita responsabilidade em escrever sobre outros modos de vida, outras visões de mundo, que são diferentes de minha experiência, portanto o cuidado científico proporcionou uma segurança necessária durante a elaboração deste trajeto acadêmico.

Este estudo é a continuidade de uma experiência de pesquisa que realizei na monografia de conclusão da graduação em Ecologia na Universidade Estadual de São Paulo (UNESP- Rio Claro) em 2002 [3]. Naquele momento, buscava compreender a relação entre homem e ambiente por meio do espaço vivido por moradores limítrofes às áreas naturais protegidas na região do Vale do Ribeira, no mesmo município onde residiam meus avôs maternos. Meu interesse foi buscar compreender como viviam populações estreitamente dependentes dos ritmos da natureza, quais saberes ou conhecimentos emergiam dessa relação e como têm se mantido diante da realidade atual.

Após esta experiência com a pesquisa acadêmica vivi uma curta experiência trabalhando em São Paulo, quando surgiu uma oportunidade para trabalhar como guia de ecoturismo em uma pousada no Pantanal (Refúgio Ecológico Caiman- Fig. 5, 6 e 7). A entrevista foi feita em São Paulo e acho que fiquei o tempo todo olhando e refletindo, de certo modo encantada com um quadro que mostrava a fotografia da pousada à beira de uma baía imensa. Fui ao encontro da paisagem do quadro… Assim, pude apaixonar-me pelo Pantanal e aos poucos, aproximar- me do ritmo da região, das estações e da cultura pantaneira.

Foi desta convivência que surgiu a chance, em 2005, de acompanhar uma Comitiva de boiadeiros (Fig. 8), onde o intuito era o de transportar cerca de 500 vacas da Fazenda Estância Caiman para outra fazenda, do mesmo proprietário [4].

Fig. 5 – Refúgio Ecológico Caiman. Miranda-MS. (Fonte: Refúgio Ecológico Caiman).
Fig. 6 – Trabalhando como guia (de costas, explicando sobre a palmeira Acuri): Trilha Cordilheira do X.
Fig. 7 – Trabalhando como guia (em pé, próxima a baía), informando sobre o passeio de canoa.

Acompanhei esta viagem durante quatro dias e quando retornei acabei escrevendo um pouco sobre minha experiência [5], mais como uma primeira reflexão que queria partilhar.

Fig. 8 – Saída da Comitiva na Fazenda Caiman. Primeiro acompanhamento presencial de uma Comitiva de boiadeiros (ao meu lado direito está o Condutor Sr. Ramon Miranda, logo atrás está o seu pai, Sr. Alfredo, e ao fundo estão os Meeiros, Fiadores e um acompanhador do Retiro Santa Vóia, Fazenda Caiman).

Naquele momento não havia intenções conceituais de pesquisa acadêmica, porém, pouco tempo depois, conversando com uns amigos sobre meu entusiasmo com o trabalho das Comitivas, trouxeram-me uma reportagem, capa da revista Terra. O título dizia: “Pantaneiro, um ser em extinção” (FRUET, 2004). O senhor que aparecia na capa era o pai da pessoa que me mostrava. O que me chamou a atenção foi que, na mesma época, em outra revista, li o comentário de pesquisador do Grupo de Estudos de Agronegócios da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul) afirmando que “Não há dados disponíveis, mas as comitivas de boiadeiros estão diminuindo e, no futuro, deixarão de existir”. (BRUM, 1998).

Daí em diante foram mais e mais investigações, sempre constatando a falta de dados sobre os boiadeiros, principalmente, no que se refere às publicações científicas. E não obstante seja possível encontrar pesquisas sobre modos de vida de peões de fazenda pantaneiros, com similaridades ao modo de vida dos boiadeiros, estes executam outros trabalhos e possuem costumes diferentes [6].

Como o boiadeiro costuma trabalhar informalmente (sem contrato de trabalho ou registro em carteira) e as Comitivas são itinerantes, é difícil obter dados estatísticos sobre sua ocorrência e, além disto, não costumam ser foco das problemáticas debatidas. Aparecem envolvidos em uma conjuntura econômica centralizada na discussão sobre o desenvolvimento da pecuária.
Em uma pesquisa historiográfica, onde foram analisadas as Comitivas de boiadeiros no Pantanal afirmou-se que, embora os boiadeiros ocupassem – e ainda ocupam – papel destacável na introdução e expansão da pecuária, sua presença na história é precariamente tratada, as informações são esparsas e pouco expressivas. O autor expõe, retoricamente, que apesar de ser tema recorrente entre poesias e músicas, é de forma indireta que a maior parte da bibliografia se apresenta: é comum encontrar boiadas, não boiadeiros (LEITE, 2003).

Estes dados chamam atenção por evidenciarem a escassez de dados disponíveis, mas também se apresenta como assunto emergente devido à ocorrência de mudanças que podem acarretar na perda do conhecimento deste segmento culturalmente diferenciado das populações tradicionais brasileiras. Acredita-se que o assunto pesquisado possui significativo valor no que diz respeito a uma forma de manejo [7] exercida por um conhecimento tradicional, aplicado há centenas de anos, e que no Pantanal, devido a seu regime de alagamento é, muitas vezes, a única alternativa de transportar o gado de uma região para outra.

Em referência à importância de pesquisas sobre populações tradicionais e os motivos pelo quais devemos estar atentos a esse conhecimento, podemos citar Marques (1999, p. 141), que conclui sobre seus estudos referentes a populações tradicionais:

[…] o foco das minhas preocupações, neste agora, concentra-se no fato de que esse conhecimento – chamemo-lo de nativo, tradicional, indígena ou como queiramos! – existe, resiste e está ameaçado. Esse conhecimento, além de extremamente útil, revela compatibilidade como a nossa ecologia – e no que ele não for compatível, muitas vezes trata-se apenas de uma questão de incomensurabilidade. Pois bem, esse conhecimento pode desaparecer. (…). Trata-se, na realidade, de um conjunto de sistemas de conhecimento altamente ameaçado de extinção e é isto o que mais me preocupa.

Em março de 2007, acredito que devido, principalmente, ao enfoque desta pesquisa, ganhei uma bolsa de estudos para o curso de um mês em um colégio na Inglaterra – Schumacher College [8], cujo tema era “Indigenous peoples & the natural world: Is ancient wisdom important to the modern world?”. Participaram pessoas de diversos países: Índia, Noruega, Austrália, EUA, Alemanha, Bélgica, Filipinas, entre outros. Só a existência deste curso e a representação de tantos países, já remete a relevância da discussão.

Um dos palestrantes, fundador do Fórum Social Mundial, Jerry Mander, colocou que embora a globalização exerça forte pressão para homogeneização do conhecimento, e o conhecimento indígena/tradicional [9] signifique assim, uma visão atrasada na ótica do capitalismo e até mesmo um impedimento ao “progresso”, ele afirma que a diversidade é a chave da vitalidade, resiliência e capacidade inovativa de qualquer sistema vivo. Isto vale também para sociedades humanas (informação verbal)10. Ainda segundo, Cavanagh; Mander (2004, p. 89):

The rich variety of human experience and potential is reflected in cultural diversity (grifo do autor), which provides a sort of cultural gene pool to spur innovation toward ever higher levels of social, intellectual, and spiritual accomplishment and creates a sense of identity, community, and meaning.[11]

No caso, a cultura pantaneira e em particular as Comitivas de boiadeiros representam uma atividade em que se realiza o transporte de espécies exóticas, o gado, inserida em determinadas paisagens [12]. Estão expostas as influências do mundo exterior; mudanças ocorridas em seu meio, que podem alterar seus valores e atitudes e ao mesmo tempo, mudanças que podem advir do próprio homem, da sua criação, pois é um ir e vir que faz do sujeito a sua existência, estando no mundo e com o mundo.

Compreende-se que estas relações construídas entre homem e ambiente muitas vezes são contraditórias e exprimem práticas que podem tanto contribuir para conservação como degradar o meio em que vivemos. Admite-se então, que há impactos ambientais gerados pela atividade pecuária, assim como pelo movimento destas boiadas, mesmo no Pantanal, onde há extensas áreas de pastos nativos. Entretanto, nesta pesquisa não se pretende aprofundar sobre este tema, mas expor um pouco da complexidade do conhecimento dos boiadeiros que ocorre através do convívio com as paisagens pantaneiras.

Face às diferentes visões do homem, se buscou inserir neste fenômeno e perceber uma forma de manejo tradicional, como prática que está diretamente conectada ao ciclo das águas do Pantanal. Procurou-se descrever sobre o modo de vida dos boiadeiros e a estrutura desta atividade ligada a uma forma de leitura das diferentes paisagens do Pantanal, levando em conta a temporalidade dos acontecimentos e a dinâmica da sociedade.

O acolhimento deste projeto no Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM) pode me auxiliar justamente na visão interdisciplinar de pesquisa que o entendimento deste tipo cultural – o boiadeiro do pantanal – poderia ter. Pela minha formação em ecologia e crescente interesse em ciências humanas, o diálogo entre esses campos foi favorável ao tema pesquisado.

Este trabalho era para ser fundamentado através do acompanhamento presencial de Comitivas, mas no segundo semestre de 2007 sofri um grave acidente a cavalo e tive que interromper meus estudos por um ano e meio. No início do ano de 2009 renovei minha matrícula, mas por causa do meu estado de saúde, infelizmente, não foi possível acompanhar outras Comitivas, acarretando algumas alterações nos objetivos iniciais da pesquisa.

Uma pesquisadora no ambiente de trabalho masculino

Quando recebi a sugestão do comitê do PROCAM para escrever sobre o desafio da pesquisadora num contexto de pesquisa tipicamente masculino, apesar de saber da sua relevância, senti-me um pouco constrangida. Talvez pelo respeito com que os boiadeiros sempre me trataram ou talvez mesmo pela curiosidade latente e decorrência do trabalho, não havia parado para pensar sobre isso. Porém esta pergunta era recorrente quando expunha a pesquisa em diferentes âmbitos acadêmicos, afinal numa pesquisa com métodos qualitativos e dialógicos, essa questão pode ter fundamento, uma vez que se considera que a intersubjetividade é um assunto essencial.

A questão central da pergunta era pertinente, principalmente no que se refere à operacionalidade do acompanhamento das Comitivas e a interação/ tensão pesquisador, pesquisado durante o convívio e entrevistas com os boiadeiros. Como seria pra eles relatar o que vivem ou sentem, para uma mulher, e como seria se o fosse para um homem?

Acredito que por esta condição perdi algumas histórias e relatos, mas sei também que ganhei outros. O respeito que tive por eles foi sempre correspondido, e se em um primeiro momento eram mais fechados, no decorrer da Comitiva ou da entrevista ficavam cada mais familiarizados comigo e com meu compromisso de valorizar os saberes que relatavam, falando mais dos familiares e das dificuldades em suas vidas.

Sempre muito cuidadosos, davam-me o burro mais manso da tropa para montar e mesmo tendo o hábito de revezar seus burros para descanso, não quiseram, em nenhum momento trocar minha montaria. Apesar de estar acostumada a encilhar cavalos, nas viagens eu somente os auxiliava, pois queriam encilhar os animais para que estes estivessem bem seguros. Na primeira Comitiva, este cuidado foi tanto, que preocupados que eu sentisse dor por permanecer tanto tempo sobre o cavalo e com a intenção de deixar meu arreio mais confortável, ao invés de colocarem apenas um pelego [13] sobre o mesmo (como de costume), quiseram colocar dois e infelizmente o efeito foi o oposto. Então, no ponto de almoço, pedi gentilmente para que retirassem um dos pelegos e mesmo não estando acostumada a andar o dia inteiro a cavalo, como andava com frequência, fiquei cansada, mas não tive nenhuma indisposição física.

Por eu querer conhecer um pouco de cada função na Comitiva, procurei não concentrar a atenção em uma só pessoa, a não ser que fosse alguém com mais experiência, mais velha, normalmente líder do grupo. Apenas durante a primeira Comitiva, não fui a única mulher que estava viajando, pois uma amiga, Elizabeth Leite (Bete), que também trabalhava na Pousada Caiman, quis ir conosco e assim, pudemos compartilhar algumas situações.

Acabei por participar de poucas Comitivas, por motivos alheios a minha vontade e talvez, muito destes momentos tenham ocorrido com certa naturalidade por meu interesse nesta pesquisa ter surgido da relação com a experiência de meu avô materno e por já conviver, um pouco com a cultura dos peões pantaneiros. No que se refere às relações de classe, talvez por este motivo, também não senti que houvesse distanciamento ou diferenciação por ser pesquisadora. Na primeira Comitiva, realmente não estava nesta condição, mas mesmo durante as outras Comitivas, o que pude observar foi uma diferenciação cultural por ser de outro Estado, ou por ser “da cidade”, e em alguns momentos notei que buscavam explicar-se melhor para que eu pudesse compreendê-los.

Porém é interessante colocar, que minha relação com os boiadeiros foi mais marcada pela relação de gênero. O trabalho que executam é predominantemente ocupado pela mão de obra masculina [14], e pode ser que pela falta de costume com a presença feminina neste ambiente, havia todo o tempo, um excesso de zêlo e uma visão fragilizada da mulher. E assim, ficavam também surpresos por eu conseguir acompanhá-los.

Sobre questões mais difíceis de compreender para quem não tem uma imagem sobre a vida dos boiadeiros gostaria de partilhar um pouco desta relação assimétrica e heterogênea entre pesquisadora e pesquisados.

Para dormir numa comitiva, como dormem todos juntos, em redes individuais, não houve nenhum problema e estranhamento, mas para necessidades fisiológicas, como era ao ar livre, eu apenas esperava a Comitiva seguir, ficando para trás, buscando alguma moita e cuidando bem para meu burro não fugir! Já para tomar banho, talvez tenha sido o momento mais delicado. Fui preparada, levando traje de banho discreto, para tomar banho com eles em algum açude, rio, ou onde quer em que houvesse água disponível. Mas percebi que eles não queriam que eu fosse junto, pediam sempre para que eu fosse antes, que assim seria melhor. Por muitas vezes, também, quando estávamos chegando ao pouso, e se ocorria de estarmos próximos a alguma sede de fazenda, eles acabavam perguntando ao praieiro [15] se havia algum banheiro disponível para banho, e antes mesmo de conversar comigo, já ficava tudo combinado.

Procurei aceitar o que me estavam orientando, pois eles ficariam mais à vontade e eu não os incomodaria. E assim, com cuidado, respeito e delicadeza, essas questões foram sendo resolvidas. Nos capítulos que seguem, um pouco mais sobre o perfil destes homens será relatado.

Estrutura dos capítulos

Para organização desta pesquisa, optou-se por dividí-la em capítulos. No primeiro capítulo apresenta-se breve contextualização do Pantanal e a formação do homem pantaneiro por meio da revisão da literatura sobre a região de estudo. Para maior familiarização ao assunto, foi feita uma introdução sobre estas paisagens relacionadas ao ciclo das águas, o que influencia diretamente na definição de roteiros das Comitivas. Em seguida, é retratado, de forma sucinta, o processo de ocupação e a consolidação da pecuária no Pantanal.

Ainda neste primeiro capítulo, busca-se retratar o marco conceitual e o caminho traçado neste estudo. O marco conceitual foi elaboradao a partir de uma abordagem sobre a interpretação cultural da paisagem como lugar no contexto de populações tradicionais. Já a trajetória metodológica se deu inicialmente, a partir de interrogações [16] voltadas aos sujeitos que vivenciam o fenômeno [17], ou seja, os boiadeiros no Pantanal Sul Matogrosssense. Posteriormente, por meio de coletas de entrevistas, histórias de vida, acompanhamento presencial de Comitivas, estes dados foram sendo construídos, analisados e tematizados (capítulos II, III, IV), compondo os elementos para buscar esboçar o universo cultural do boiadeiro de acordo com o recorte ao que se pretendeu pesquisar, ou seja, sobre seu modo de vida e as leituras das paisagens pantaneiras.

O segundo capítulo: Comitiva de boiadeiros – modo de vida está dividido em três subtemas. No primeiro, Viajantes do estradão foi feita uma descrição sobre o modo de ser boiadeiro. O segundo tema: Na batida das Comitivas de boiadeiros, trata-se de como ocorrem estas Comitivas, e o terceiro: Puxando a boiada, atenta-se para a divisão de ofícios nas Comitivas.

No terceiro capítulo: Comitiva pantaneira é dada a descrição sobre a leitura da paisagem. A partir do tema: Na Batida do estradão: Marcos referenciais nas paisagens, são tratados os significados atribuídos às paisagens pantaneiras. Já no tema: No ritmo das águas, são abordados os significados dados às estações sazonais, de acordo com a definição de trajetos nas Comitivas.
No quarto capítulo propõe-se Aproximações para uma conclusão, incluindo algumas reflexões acerca dos dados reunidos, bem como a importância e valorização do conhecimento dos boiadeiros. Por ser um assunto identificado como recorrente, também se procurou tratar sobre quais motivos têm levado às transformações recentes neste trabalho humano ou até mesmo o seu declínio, suas consequências e contradições. No último capítulo estão apresentadas as considerações finais, onde se procurou apontar as contribuições e limites deste trabalho, sugerindo novas linhas de pesquisa sobre o tema.

Todos estes temas e capítulos se interpenetram, porém são focados em grandes áreas, que procuram adentrar aos poucos ao mundo dos boiadeiros. Mundo este que se torna utópico a ser desvendado à medida que se conhecem cada vez mais as habilidades exigidas para este trabalho e suas dificuldades, mas não menos passível de apreender elementos que demonstrem uma relação de interdependência entre homem e ambiente.

CAPÍTULO 1 – O CAMINHO TRAÇADO NA PESQUISA

No pantanal ninguém pode passar a régua. Sobre muito quando chove. A régua é existidura de limite. E o pantanal não tem limites. (…).
O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai o garoto pelo piquete com olho de descobrir. Choveu tanto que há ruas de água. Sem placas, sem nome, sem esquinas. (…).
A pelagem do gado está limpa. A alma do fazendeiro está limpa.
Manoel de Barros (1990: 237).

Fig. 9 – Ciclo das águas e boiadeiros no Pantanal-MS. (À esquerda seguindo o sentido da seta: 1. Enchente: Ponte sobre o Rio Miranda. Segunda Comitiva. 2.Cheia: Travessia Rio Cerradinho. Segunda Comitiva. 3. Vazante: Ponteiro Morcego. Primeira Comitiva. 4. Seca: Saída de Comitiva da Fazenda Fátima). Montagem das fotos: Juliana Moreno.

1.1 Contextualização do tema de estudo

1.1.1 O Pantanal

É fundamental explanar sobre a dinâmica complexa nas paisagens do Pantanal, para que também se desvele o modo de vida e a leitura da paisagem pelos boiadeiros, pois estes são assuntos considerados interdependentes. É assim que afirma Proença (1997, p.72):

No Pantanal tudo depende das águas. São elas que condicionam os diversos tipos de lida, levam o homem a ter necessidade de mudanças nas grandes enchentes, modificam os solos, obrigam certas aves a migrar para outros lugares do planeta, empurrando o gado para cima das cordilheiras, quebram a monotonia da planície, ilhando muitas fazendas.

O Pantanal é a maior planície inundável do mundo. Sua área total é de 210.000 Km2, abrangendo o Brasil, a Bolívia e o Paraguai. Deste total, 138.183 Km2 estão no Brasil, ou seja, cerca de 70% ocorrem distribuídos entre os Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. (ALHO; LACHER JUNIOR; GONCALVES, 1988). Neste último Estado, presente área de estudo, o Pantanal corresponde a 89.318 km2, equivalendo a 64,64% da área total do Pantanal no Brasil (ABDON e SILVA, 1998).

Ab’Saber (1988), discorre sobre a origem do Pantanal Matogrossense, propondo a teoria de que o que hoje é uma depressão teria sido no passado uma vasta abóbada de escudo, que funcionava como área de fornecimento de materiais detríticos para as bacias sedimentares do Grupo Bauru (Alto Paraná) e Parecis, formada até o Cretáceo. Durante o soerguimento pós-cretáceo teria ocorrido então, uma desestabilização tectônica, devido a falhamentos estruturais facilitando seu aplainamento e assim, comportando-se, como anticlinal esvaziada. Atualmente, o Pantanal Matogrossense se caracteriza por extensas planícies de acumulação de sedimentos fluviais.

A planície pantaneira faz parte da Bacia do Alto Paraguai, que possui área de 496.000 km2, sendo ainda parte integrante da Bacia do Prata. Está sujeita a um regime das águas fortemente sazonal, com precipitação média de 1.396 mm, variando entre 800 e 1.600 mm. A declividade dos rios é de 0,1 a 0,3 m/km com um gradiente topográfico de 0,3-0,5 m/km na direção leste-oeste e 0,03-0,15 m/km na direção norte-sul. As altitudes na planície variam de 80 a 150 metros (AGÊNCIA NACIONAL DAS ÁGUAS, 2003).

De acordo com a classificação de Köeppen o tipo climático desta região é Aw, apresentando dois períodos distintos: chuvoso (outubro a março), quando ocorre cerca de 80% do total anual das chuvas e seco (abril a setembro). A temperatura média anual do ar é de 25,5oC, com médias mínimas e máximas de 20oC e 32oC, respectivamente (SORIANO, 2002).

Existe um atraso de aproximadamente quatro meses entre o pico da cheia do norte e do sul do Pantanal, o que faz com que a estação seca vigore na porção norte do Pantanal enquanto o nível das águas atinge seu pico na porção sul. Os níveis da água no norte são extremamente variáveis, subindo e descendo em resposta direta ao volume de chuvas. Os níveis da água no sul, por outro lado, aumentam e diminuem mais suavemente ao longo dos anos, devido à retenção natural da inundação que amortece as flutuações causadas pelas chuvas intensas Heckman [18] (1999 apud HARRIS et al., 2005).

Os períodos mais frios, bem como a duração da estiagem são diferentes e imprevisíveis de ano em ano, resultando em fortes pressões sobre as populações animais e vegetais. Apesar disso, o solo hidromórfico e a forte inundação anual, que estende bastante dentro da seca, amenizam os efeitos dessas variações, pelo menos para parte dessas populações. (BROWN JUNIOR, 1984). Ou seja, enquanto algumas espécies se adaptam à constante mudança e sobrevivem às extremas condições, outras definem seus ciclos de vida de acordo com as estações.

Mapa 1 – Sub- Regiões ou “pantanais” do Pantanal: Bacia do Alto Paraguai no Brasil. Fonte: Silva; Abdon (1998).

A vegetação é heterogênea e influenciada por quatro biomas: Floresta Amazônica, Cerrado (predominante), Chaco e Floresta Atlântica. Adamoli [19] (1981 apud HARRIS et al., 2005). Segundo Silva et al. [20] (2000 apud HARRIS et al, 2005), um levantamento aéreo do Pantanal brasileiro identificou 16 classes de vegetação com base nas fitofisionomias, sendo os campos a fisionomia mais representativa (31%), seguida do cerradão (22%), cerrado (14%), campos inundáveis (7%), floresta semidecídua (4%), mata de galeria (2,4%) e tapetes de vegetação flutuante ou „baceiros‟ (2,4%).

É devido a este mosaico de fisionomias vegetais que a região é considerada como Complexo Pantanal, sendo declarado Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, 2009). Sua importância também está estabelecida na Constituição brasileira, no artigo 225, § 4o, sendo reconhecido como Patrimônio Nacional.

As principais razões pelas quais o Pantanal merece este reconhecimento internacional podem ser elencadas em: trata-se de um complexo de ecossistemas únicos no mundo; constitui o habitat de espécies animais e vegetais diversificadas, muitas delas consideradas raras e algumas em processo de extinção; é protegido nacionalmente; pertence e tem influência sobre mais de um país; revela em muitos aspectos uma sociodiversidade peculiar dada ao processo histórico de formação sócio-espacial. Essa formação é conhecida popularmente como a cultura do pantaneiro – por seu trabalho, culinária, vestuário, costumes, festas, suas manifestações artísticas e religiosas. (WERTHEIN, 2000).

1.1.2 O homem pantaneiro e a pecuária

 

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